ÁGUAS DE MARÇO

TOM JOBIM

 

 

UMA TELA IMPRESSIONISTA EM FORMA SONORA REVELA O TALENTO DE USAR A SOFISTICAÇÃO DA SIMPLICIDADE

Foi em um colecionavel do jornal O Pasquim que o megasucesso Águas de Março veio a público pela primeira vez, em 1972. Naquele ano; o músico Sérgio Ricardo teve a idéia de fazer circular com o jornal a série Disco de Bolso, algo como o vovô dos hoje comuns CDs vendidos em banca. A idéia era trazer dois singles na mesma gravação: em um lado, um compositor conhecido, no outro, um estreante. No primeiro volume, Águas de Março era acompanhada de Aqnus Sei, de João Bosco e Aldir Blanc, gravada no lado B. Foi batizado como O Tom e o Tal. Os "tais" João Bosco e Aldir Blanc, que haviam vencido um concurso para aspirantes, começavam a trajetória de uma parceria que viria a se firmar entre as melhores da MPB.

O encarte do pequeno disco mostra uma relação assumida por Tom com o poema O Caçador de Esmeraldas, do poeta parnasiano Olavo Bilac. "Foi em março, ao findar dos chuvas, quase à entrada/ Do outono, quando a terra, em sede requeimada/ Bebera longamente as águas da estação...", dizem os versos citados.

"Ao lado de Matita Perê, Águas de Março prenuncia uma intensificação em sua obra do uso de temas ligados à natureza", diz o pesquisador Zuza Homem de Mello. Foi assim que o lançamento de uma dos canções mais conhecidas da história da música popular brasileira já começou diferente de tudo feito até então. A série Disco de Bolso, que teve vida curta, prosseguiu com Caetano Veloso apresentando Fagner.

Foi em seu sítio em Poço Fundo, no Rio de Janeiro, que Tom escreveu Águas de Março, violão sobre os joelhos. Segundo disse em um depoimento dado a Sérgio Cabral e incluído no livro Antonio Carlos Jobim - Uma Biografia, o mote surgiu de uma quase epifania. "Eu estava com Teresa [mulher do compositor] là no sítio, vendo uma agüinha passar pelo regato, e a coisa começou a brotar." Era março de 1972 quando Tom, em sua casinha de pau-a-pique, apelidada de Barraco 2, teve a idéia da música, no auge do trabalho obsessivo no álbum Matita Perê. Teresa o ouviu falar do tema ainda meio dormindo e disse que era mesmo lindo. Foi quando ele pegou um panel de embrulhar pão e rabiscou a idéia inicial da canção.

O LP Matita Perê foi lançado em 1973 no Brasil, enquanto Tom, como ele mesmo contou anos depois, já pensava em traduções para a versão americana do album, lançado no mesmo ano, sob condução do maestro Claus Ogerman. "Um dia, eu estava meditando em cima do verso ’é um espinho na mão, é um corte no pé’ e percebi tudo. Como é que um americano iria cortar o pé se ele nunca anda descalço? (...) O negócio era esquecer a letra em português e criar novos versos em inglês, procurando palavras duras, contundentes, bem rascantes."

 

NOTAS IGUAIS, ACORDES DIFERENTES

Mas, afinal, qual é a mágica da canção de letra rápida e melodia alegre, inspirada no folclore brasileiro, que tão bem se moldou ao batepapo músical de Elis Regina e Tom Jobim no antológico disco gravado pela dupla (leia texto), que trai a versão mais famosa da música? Para os criticos Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, no livro A Canção no Tempo - 85 Anos de Músicas Brasileiras, o segredo é que, por mais "simples" que pareça, Áquas de Março possui uma estrutura músical complexa e sofisticada "que a distingue como uma das composições mais inteligentes da músíca brasileira".

Estrutura essa que se apóia na "obstinada repetição de uma pequena célula ritmico-melódica, construída basicamente com duas notas, harmónizada por um encadeamento de quatro acordes, com o uso de inversões e outras diferenças sutis". uma estrutura melódica que se repete, de quatro em quatro compassos, 18 vezes, mas com a substituição dos acordes: são notas iguais com acordes diversos. É assim que uma canção com poucas notas que se repetem o tempo todo consegue parecer tão rica, tão colorida, mas, ao mesmo tempo, por sua simplicidade, garantir que os versos brotem um depois do outro na memória de quem já a ouviu.

A mesma "sofisticação simples" que garante a empatia com a melodia permeia toda a letra, composta por versos curtos sobre temas bucólicos. Águas de Março é uma canção sobre um fim de tarde de verão, descrito em nacos visuais e semânticos que, cantados até o fim e entendidos como queira quem a cantarola, compõem um quadro de belas cores quentes. Mas que, para Tom, era mesmo a paisagem da casa em Poço Fundo, onde passava seus fins de semana e onde se inspirou para escrever a letra naquele embrulho de pão.

Apesar de toda a aclamação, ha quem conteste a originalidade de Águas de Março, tachando-a de plágio. Alguns críticos identificam no folclore e em canções mais antigas de outros autores fontes mais que inspiradoras, e não assumidas, da canção de Tom Jobim (leia o texto).

Independentemente da discussão sobre possíveis "fontes ocultas" no mosaico de influéncias por trás de Águas de Março, o certo é que ela sintetiza as características da revolução que Tom Jobim protagonizou na história da música brasileira. A canção combina engenhosidade, misturas ricas das tradições populares, jázzisticas e eruditas, com uma aparente simplicidade que a torna irresistivelmente facil de ouvir, fruir, cantar e lembrar. Tamanha fusão de qualidades, expressa numa obra tão vasta e diversificada, justifica - segundo muitos críticos - atribuir ao seu autor o título de mais importante música da MPB.

Muito antes, porém, de ser alçado à posição de "maestro soberano" (palavras de Chico Buarque na canção Paratodos), convidado para representar o novo gênero da bossa nova em concertos nos Estados Unidos, o garoto Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, nascido em 1927 na Tijuca, no Rio de Janeiro, já tinha a música no sangue. Aos 10 anos, nos tempos em que nadava na lagoa Rodrigo de Freitas, passeava pelas areias brancas e repletas de conchas grandes da praia de Ipanema, cercada pelas pitangueiras e por todo ideal idílico da Cidade Maravilhosa, Tom já cantarolava com uma gaita-de-boca.

"Às vezes dedilhava um violão, os acordes, uma coisa rudimentar. Até que um dia veio um piano alugado lá pra casa, um piano velho pra minha irmã estudar", disse Tom em depoimento a Zuza Homem de Mello. "E descobri que aquilo era um enorme brinquedo, cheio de possibilidades." Tom seguiu a vida tendo a música como hobby. Até entrou na faculdade de arquítetura, mas desistiu quando percebeu que gostava mesmo era de compor, tocar e cantar.

Teve muitos professores particulares, estudou orquestração e instrumentação, mas casou-se e foi ganhar a vida, claro, como pianista de boate: "Toquei em tudo quanto é inferninho de Copacabana". Até que entrou para uma gravadora, conheceu arranjádores, fez parceria com Newton Mendonça, foi apresentado a Vinicius de Moraes e ficou conhecido pela parceria músical com o "poetinha" no filme Orfeu Negro. A bossa nova, movimento do qual seria um dos grandes autores e que o consagraria, só surgiu quando Tom, Vinicius e João Gilberto, a "santissima trindade", gravaram um album com Elizeth Cardoso em 1958, incluindo a faixa Chega de Saudade, já com as sutilezas e sofisticações tão características do novo gênero.


[da: “100 CANÇÕES ESSENCIAIS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA”, in rivista BRAVO!, numero speciale, maggio 2008]