CAETANO

 

 

Odete — Caetano, a gente estava agora pouco conversando sobre os latino-americanos, e chegamos a conclusão de que eles estão muito distantes uns dos outros. A gente está muito mais próxima da cultura européia do que a cultura da nossa vizinhança; e o que mais importante, mais distante das pessoas que têm mais ou menos os mesmos problemas que nós. As vezes parece um pouco aquela velha estoria: “o brasileiro tem vergonha de ser brasileiro" e o latino-americano tem vergonha de ser latino-arnericano. Por isso procura se afastar de ser semelhante.

CAETANO — Eu acho que é por causa do contrôle dos meios de comunicação que fica evidentemente nas mãos de quem tem o contrôle de tudo, não é? Quer dizer, os países desenvolvidos, os países que têm superioridade econômica determinam mesmo a história oficial das nações, não é? Esses países têm os meios de comunicação controlados por êles, e, nós não temos, nenhum dos nossos países tem a ponto de superar os outros. Quer dizer, isto, depois de uma história como é a da América Latina, de países colonizados por outros. Nós somos resultado de colonizações européias. Agora, os EUA, também, são, mas os EUA, com sua força econômica, passaram a ser uma especie de representante geral, final da cultura européia.

Odete — Exato. Quer dizer que sendo assim, um produto lançado pelos países que tem o contrôle dos meios de comunicação, mesmo que esse produto seja da pior espécie, será assirnilado por nós. E um produto, mesmo que seja da melhor espécie, surgido num ís vizinho nem chega ao nosso conhecimento.

CAETANO — Isso é terrível, porque como nas outras coisas, no campo da cultura, não á também facilidade para a união. Isso é terrível porque na verdade era preciso conhecer mais o que acontece nos outros países. Eu vi agora um filme em Paris, sôbre a Argentina, que dura 4 horas e durante essas quatro horas eu fiquei interessado nêle. Peblo acùmulo de informações que eu adquiria através dêle.

Odete — Qual é o filme?

CAETANO — Chama "la hora de los hornos".

Odete — Quem é o diretor, você sabe?

CAETANO — Não sei, você sabe que me esqueci?

Odete — Não é um tal Solanas?

CAETANO — Ah, é isso mesmo, Solanas.

Odete — Ouvi muita discussão respeito desse filme, no festival de Pesaro.

CAETANO — Mas como eu disse, o filme me interessou durante as 4 horas, pela carga de informações que tinha sobre a Argentina. Eu sou brasileiro, vizinho da Argentina e não sabia muita coisa que vi.

Odete — Imagina quantas coisas acontecem assim. Quanta coisa importante pode estar acontecendo ao nosso lado e nós estamos ignorando não é?

CAETANO — É. Vi nesse filme coisas fundamentais da cultura argentina, da formação de Buenos Aires, das províncias, da situação econômica atual da vida das classes trabalhadoras,de , em todos os níveis.

Odete — E você teve alguma vez, idéia de fazer uma, excursão pela América Latina?

CAETANO — Ah, tive sim; naquela época em que Capinam e Gil fizeram SOY LOCO POE TI AMERICA. Nós já tínhamos conversado sobre isso e o Guilherme Araújo já tinha falado que tinha muito interesse em procurar partir para êsses países, não pobremente, numa missão cultural, que em geral termina sendo também desconhecida pelo público, mas tentando de uma maneira mais moderna, ter acesso aos meios mais fortes de comunicações dêsses países, pra começar uma espécie de intercâmbio. Mas o nosso trabalho não pode ter continuidade e depois não houve possibilidade de tentar isso.

Odete — Mas apesar dessa dificuldade de comunicação, você sabe que lá em Pesaro deu pra gente sentir a afinidade que temos com os nossos vizinhos. Era com êles que nós mais tínhamos diálogo. Tinha-se um entendimento total por exemplo com Garcia Marques, autor do livro CIEM ANOS DE SOLEDAD. E o cinema cubano por exemplo agora está fazendo tanto sucesso nos festivais quanto o cinema brasileiro. Em Veneza foi dito pela imprensa, que o festival foi salvo pela América Latina. Eu lembrei-me justamente do SOY LOCO POR. TI AMERICA que você gravou, e que deu-me idéia, assim que a ouvi, de um hino de fusão da América Latina.

CAETANO — Essa música foi inclusive lançada no Chile com sucesso. Eu tenho uma gravação com a letra um pouco transformada.

Odete — Enquanto você não está gravando aqui, você está ocupando seu tempo de que forma?

CAETANO — Eu estou estudando inglês.

Odete — Ouvi dizer que você está no "advanced" não é mesmo? Isso significa que você já conhece bastante o inglês. Quando você fez aquelas músicas com letra em inglês você já fez pensando em vir para cá?

CAFTANO — Não. Eu não tinha o menor plano de vir pra cá. O uso da língua inglêsa foi por diversas razões. Uma delas é porque achei fascinante fazer alguma coisa em inglês. Porque me animava e eu estava um pouco cansado de escrever em português. Inglês era uma língua que eu conhecia mais ou menos, como todo mundo conhece mais ou menos, porque é uma língua internacional. O Brasil está cheio de língua inglêsa, a França está cheia de língua inglêsa, de modo que a gente sempre conhece um pouco e pode utilizá-la. Eu tinha estudado na escola e sempre gostei da língua, achava fácil de aprender, mas nunca fiz um curso melhor da, língua de modo que aquelas coisas são, como dizem os inglêses aqui, muito mal escritas. Mas eu não tenho nenhum problema com relação a isso porque a língua não serve para os americanos exportarem tudo? Não serve pra gente receber os turistas americanos, pra gente comprar produtos americanos? E dizer "dippy-de-doo", dizer "I love you"? Em "Baby" já tinha "I love you".

Odete — E depois ouve-se muito disco de música americana, ouve-se muito filme americano. A genie fala, pràticamente inglês de ouvido.

CAETANO — É isso mesmo. Inclusive o meu inglês é muito disso. Além do ginásio, é cinema e música, então eu acho que é uma língua que não merece nenhum respeito nesse sentido, de ser cuidada. Eu não tenho nenhuma obrigação de cuidar de uma língua que entra pelos meus ouvidos a tôda hora sob todos os pretextos. Então posso usá-la também pra dizer algumas coisas. As pessoas podem dizer que estão mal escritas mas foram escritas. Porque é uma nova língua na verdade, quem entende sou eu, Guilherrne, Dedé, Wally, Duda, Luìs Carlos Maciel, você. Algumas pessoas entendem. êsse inglês, talvez seja até melhor do que o outro.

Odete — Você também está no "advanced" Dedé?

DEDÉ ― Não. Estou no "begining".

Odete — E você Guilherme, também está no beginning?

GUILHERME — Estou no intermediário.

Odete — O Guilherme é um prodígio de força de vontade. Há 2 anos atrás êle não falava "thank you". Eu lembro que êle me disse que vinha à Inglaterra e eu fiquei surpresa. Perguntei como, se êle não sabia falar uma palavra, Mas êle veio assim mesmo. Depois alguns meses já estava se virando.

CAETANO — Agora está falando tudo em inglês. Mas o Guilherme é fantástico.

Odete — Nunca vi força de vontade igual. Êle resolve fazer uma coisa e faz simplesmente.

CAETANO — Êle pode. É incrível, êle pode tudo. Êle chegou aqui e falou "'é Inglaterra?', então vou falar inglês".

Odete — Quando cheguei achei a casa de vocês linda. Mas como vocês resolvem o problema de não existir empregada doméstica na Europa? Nós todos que estamos acostumados a ter alguém que cozinhe e arrume a casa pra a nós, ficamos completamente desorientados quando chegamos aqui. Como é que vocês se viram?

CAETANO — Ah, não tem problema, eu adoro lavar prato.

Odete — E cozinhar, quem cozinha?

CAETANO — A gente divide as tarefas.

Odete — Quando eu cheguei aqui o Guilherme é que estava cozinhando.

GUILIIERME — É, hoje foi o meu dia. Mas a gente se reveza.

Odete — Mas hoje também foi o Guilherme que cozinhou.

DEDÉ — É que ele sabe cozinhar mais do que nós. Nós preferimos outras tarefas.

Odete — E você Dedé sabe cozinhar o que?

DEDÉ — Omelette e faço uma especialidade: espagheti à carbonara.

Odete — E pra lavar roupa como vocês fazem?

GUILHERME — Temos máquina de lavar. E depots pra lavar prato por exemplo, nem precisa esfregar. Há produtos aqui em que basta mergulhar o prato ou o talher dentro que já sai limpo. Todos os produtos de limpeza, aqui são preparados para facilitar tudo.

Odete — Isso tem seu encanto. Hoje avistei à uma certa hora o Caetano na pia de avental lavando prato. Achei lindo, humano. Embora vocês estejam muito bem instalados, num local átimo, vocês estão satisfeitos é claro, mas observei que vocês sentem uma certa falta de sol, não é mesmo?

CAETANO — Ah, sinto muito. Eu sempre senti muito. Em S. Paulo também sentia uma falta incrível do sol da Bahia. E agora eu passei todo êsse tempo em Salvador, morando na Pituba, na beira da praia, embora fosse inverno, mas como todo mundo sabe na Bahia não há inverno, graças a Deus, então voltei ao habito antigo do sol, de modo que estou sentindo uma diferença incrível e eu não gosto mesmo de tempo cinzento. Felizmente aqui tem uma porção de coisas pra compensar: a televisão e ótima, tem mil coisas pra ver, estudo, saio muito, King's Road é aqui na esquina e vou lá a tôda bora, é uma rua linda, coloridíssima, com roupas lindas.

Odete — Hoje você disse que embora vá chegar o inverno, você só vai comprar roupas coloridas.

CAETANO — É, eu quero roupas coloridas, porque eu tenho medo do inverno. Eu já sei. Quando começa todo mundo sair de prêto, cinza e marrom, a cidade fica parecendo um filme em branco e prêto. É horrível, eu não agüento. Eu quero ficar diferente. Tenho que botar uma cor pra descansar a vista.

Odete — Eu notei êsse problema de luz e sol porque tôda vez que eu abria a bôca para falar na beleza do sol e do calor que fazia em Roma antes de eu chegar aqui, o Guilherme fazia sinal pra mim, por trás de você, para não comentar.

CAETANO — O Guilherme pensa que me engana.

Odete — Êle já me chamou duas vêzes num canto para pedir para eu não falar do sol e do calor perto de você.

CAETANO — Êle pensa que me engana. Quando eu acordo de manhã, êle já, está na sala lendo os jornais e diz logo em seguida "mas o dia este lindo hoje, você viu?". Eu olho assim, e está entrando aquele solzinho sórdido pela janela e êle fica dizendo "que sol, está um calor incrível" e eu morrendo de frio. Dedé tôda enrolada no cobertor sem querer se levantar por causa do frio e êle dizendo que está um sol maravilhoso.

Odete — É mas acho que há outras coisas que compensam, realmente. Hoje eu dei um passeio por Londres e deu pra sentir.

CAETANO — É uma coisa maravilhosa a gente sair pra rua em Londres. Todo o dia eu passe pela King's Road pra ir pra escola e fico alegre, eu melhoro quando passo por ela. E as pessoas são tão bonitas. Impressionante. Nunca vi tanta gente bonita, na minha vida, com tanta roupa bonita. Os cabelos enormes, é fantástico.

Odete — Fantástico também que em King's Road, aqui na esquina, há um movimento incrível. E quando você chega aqui em sua casa, nesta rua, é um silêncio total. Não se ouve barulho de carro nem de gente. Parece de repente que se está numa fazenda no interior do Paraná. Por isso é que vocês estão tranqüilos.

CAETANO — É bacana mesmo. A gente brinca muito aqui em casa, se diverte muito. A gente vê também muita televisão e acontecem coisas bacanas na televisão aqui. Nós vimos os Rolling Stones pela televisão em Hyde Park e o Mick Jagger espantou a gente.

Odete — E vocês viram também o Bob Dylan não foi?

CAETANO — O Bob Dylan nós fomos assisti-lo. Fomos até a ilha de Wight de trem, depois de barco, depois de trem de nôvo. Fomos parar nessa ilha, entre duzentos mil hippies. Foi uma coisa maravilhosa. Principalmente o público. Era uma planicie enorme, superlotada de gente, com o Bob Dylan que era um ponto branco ao longe. Mas você ouvia tudo perfeitamente porque a amplificação é perfeita. E o público era fantástico. Enquanto alguns dançavam outros dormiam pelo chão. Nós vimos também o Johnny Cash pela televisão, um cara que a genie não conhecia antes, mas agora no Brasil todo mundo já deve conhecer porque êle canta junto com o Bob Dylan no último disco que êle gravou. Fêz também uma poesia ao Bob Dylan, na contracapa. Nôs vimos o programa dêle vindo dos EUA. Êle cantando na prisão de San Quentin. Uma coisa espetacular porque êle tem uma cara tão pesada, uma cara assim cafajeste e canta umas coisas assim meio grosseiras, umas coisas profundamente americanas, mas com um senso de lirismo terrível. É uma coisa muito linda. Fiquei impressionado. Isso tudo êle cantando, com montagens sobre a câmara de gás, contando como é... ficou muito forte.

Odete — Você já, sabe de que forma irá se apresentar aqui? Você vai deixar crescer o cabelo?

CAETANO — Eu nunca mais cortei o cabelo. Venho deixando o cabelo crescer desde a Bahia, e não penso em cortá-lo. Mas não tenho a menor idéia com que imagem me apresentaria.

GUILHERME — Isso tudo vai deperider das músicas, do disco que vier a ser feito, de uma série de coisas.

CAETANO — Isso tudo vem sempre naturalmente, não é?

Odete — Quando você fizer o primeiro disco aqui, você vai apresentar mùsicas suas já feitas ou somente novas?

CAETANO — Não tenho a menor idéia ainda. Depende. Se eu fizer coisas novas que me interesse gravar, gravarei mas posso utilizar qualquer coisa que já tenha feito.

Odete — Eu pessoalmente acho que você já tem coisas feitas tão lindas que você devia trazer ao conhecimento do mercado europeu.

CAETANO — Eu preciso ainda me sentir à vontade aqui pra saber, eu ainda não sei de nada.

Odete — Você está pràticamente, no momento, fazendo um período de adaptação não é?

GUILHERME — Isso já era uma previsão da própria Philips que já dizia lá no Brasil que achava muito importante, que antes de fazermos qualquer coisa aqui, viver um tempo despreocupadamente, um período bastante razoável, de pelo menos 5 ou 6 meses.

Odete — É, isso é fundamental. Mas eu sei que você já tem um trabalho acertado. Você vai fazer a música do próximo filme do Glauber, que êle vai rodar na África.

CAETANO — O Glauber me escreveu de Roma, logo que cheguei em Lisboa. Eu fiquei muito contente. Escrevi a êle aceitando o convite. Depois êle me ligou aqui pra Londres, dizendo que ia a África e que na volta passaria por aqui pra conversar com a gente sôbre o assunto.

Odete — Você já tinha feito música pra filme?

CAETANO — Fiz sim. A música do filme do Paulo Gil Soares "Proezas de Santanás na terra do leva-e-traz".

Odete — A experiência lhe satisfaz tanto quanto fazer música pra disco?

CAETANO — Satisfaz. Eu gostei muito das músicas que fiz pra êsse filme. Eu fiz a música num período de transição. Foi antes de eu fazer Alegria Alegria. Eu tinha ficado um ano sem compor e durante essa época eu fiz a música pro filme Isso foi bom pra mim porque me estimulou. Em geral serviço- encomendado liberta muito. Porque a gente perde o compromisso com o tipo de coisa que a gente faz. Quer dizer, eu não fiz música de fundo que isso não saberia fazer. Escrever pra orquestra seria impossível. Fiz canções que foram usadas no filme.

Odete — Por acaso você sente falta da sua casa,. da sua poltrona, da sua vitrola, de algum canto da sua casa? Essas coisas que em geral as pessoas sentem falta?

CAETANO — Não. Não sinto muita falta não. Eu sinto falta é da Bahia. Como tôda, as vêzes que fiquei fora dela. Tanto que nunca ficava muito tempo sem voltar à Bahia. Agora eu acho que vou ter que ficar É uma coisa nova na minha vida. Sinto falta das pessoas da minha família, dos meus amigos e sinto falta do apartamento que tive em S. Paulo. Não propriamente das coisas que tinha lá, mas principalmente da maneira como a gente vivia lá, que era muito bacana. Agora, da poltrona eu não sinto falta, porque tanto faz pra mim sentar num lugar como em outros Eu deixei uma poltrona lá, aqui tenho outra, e vitrola já comprei uma boa aqui e estou ouvindo o disco dos Beatles que comprei hoje.

Odete — Sim, claro, são coisas substituíveis. Você preferia estar lá do que aqui?

CAETANO — Preferia, na Bahia preferia. Mas na verdade quando a gente fala isso a gente está falando abstratamente, porque os lugares existem no tempo, quer dizer, tanto não prefiria mesmo, de fato, que não estou lá. Quer dizer, que Bahia é uma coisa na minha cabeça, mas o tempo que se está vivendo no Brasil hoje é outra coisa, está entendendo? Mudo tudo. Gostaria de viver na Bahia, mas não posso, acabou.

Odete — Você já ouviu seu último LP? Você está satisfeito com êle?

CAFTANO — Eu trouxe um acetato que a Philips me deu. Eu gostei dêle sim. Esse disco eu não ia fazer sabe? Eu fiz o disco de uma maneira inteiramente irresponsável. Eu não estava dando a menor atenção a problemas de música no Brasil. Eu acho inclusive que são coisas que não me interessam muito agora. Por isso não gostaria de discutir essas coisas agora. Nem fiz esse disco profissionalmente, sabe? Na verdade foi uma coisa muito amadora, porque eu só resolvi fazer o disco no dia da gravação. Eu já tinha combinado com o Rogério Duprat que não ia fazer. Êles só foram lá porque o Gil tinha concordado em fazer o dêle. Quando êles chegaram eu resolvi fazer o disco, porque me deu vontade. Tive a sensação de que podia fazer uma coisa espontânea. Eu achei uma coisa tão maluca, tão desarrazoada, fazer um disco em Salvador, num momento em que não tinha nada pra dizer. E na verdade eu não quero que meu disco diga nada. Não quero que ninguém entenda nada do meu disco. Eu tenho inclusive mandado alguns textos pro Pasquim pra tentar dizer isso. Mas eu não consigo dizer com clareza. Eu tenho mêdo que o disco venha a ser alguma coisa. Eu queria que êlle morresse nêle mesmo. O que tem nesse disco é muito diferente do que tem antes. Eu me sentia purificado pra fazer o disco. Tôda a carga do que eu fiz antes não deve entrar nesse disco. Tanto que eu só resolvi fazer o disco quando resolvi gravar CAROLINA, do Chico que é uma coisa na qual tenho pensado muito últimamente.

Odete — Por quê?

CAETANO — Porque foi quando começou a me parecer interessante.

Odete — Porque a partir disso você começou a achar interessante?

CAETANO — Porque a partir de gravar a CAROLINA eu me senti realmente purificado, achei que não ia ser mais um disco de comentário, um disco de movimento, achei que la ser um disco pessoal meu, sem a ligar a nada, sem coerência com o que eu vinha fazendo antes, está entendendo? Não tem tropicália, entende? Uma coisa completamente irresponsável sob esse ponto de vista. Quer dizer, eu gravo as ,coisas porque sinto prazer nisso. Porque gosto e me emocionam nada mais. Ou então simplesmente as músicas que tinha acabado de fazer, eu gravei. Além disso gravei um samba de roda que adorava há muito tempo, e CHUVAS DE VERÃO que é uma música que eu adoro há anos.

Odete — Bom, eu ia lhe fazer uma pergunta, mas diante do fato de você ter falado que CAROLINA é uma música que lhe emociona profundamente, não sei mais se tem sentido minha pergunta, em todo caso lá vai. Já ouvii vários comentários que demonstram haver controvérsia na maneira de encarar sua gravação de CAROLINA. Há gente que acha que você a gravou com muita emoção e há gente que acha que é uma espécie de gozação que você faz ao Chico.

CAETANO — Desde que eu disse que o disco não tem nenhuma intenção de comentário, está excluída a possibilidade da idéia de que seja uma gravação para gozar o Chico. Eu acho por exemplo que a gravação de CORAÇÃO MATERNO não era para gozar o Vicente Celestino, quanto mais a gravação de CAROLINA, num momento em que não estou fazendo comentário. Foi apenas uma sensação de pureza, de liberdade, de querer gravar e gravar, pronto. Entende?

Odete — Porque das pessoas que ouvi essa discursata, ,justamente uma delas se referiu à gravação do CORAÇÃO MATERNO, dizendo que essa você tinha feito com seriedade, mas que a Carolina você tinha gravado propositadamente mai, com displicência, chegando a desafinar propositadamente determinados trechos.

CAETANO — Foi a música que mais propositadamente displicente foi gravada tem todo o disco. Inclusive eu tinha pedido no Rogério•Duprat pra não botar nem contrabaixo. E me chateei por êle ter botado. Não queria nem bateria, só queria violão. Eu gosto daqueles violinos que entram só no fim, dá uma coisa misteriosa. Agora, aquela maneira displicente de cantar a música quando me veio a idéia de cantar a música já veio assim. E foi meio imediato, pois foi a primeira música do disco que gravei. Era minha idéia gravar com a voz meio quebrada, aliás. o Luís Carlos Maciel, na crítica que fêz sôbre o disco. escreveu uma coisa absolutamente perfeita sôbre isso. Eu atê escrevi uma carta pra êle dizendo isso. Eu estava justamente escrevendo alguma coisa sôbre a minha gravação de Carolina, porque eu tinha tanto mêdo da incompreensão; das pessoas continuarem pensando, que era uma coisa dentro daquele tipo de discussão que vinha sendo colocada antes. Mas depois que eu lia crítica do Maciel sôbre o disco, eu descansei. O comentário dêle foi perfeito. Por que de um lado, a Carolina, de certa forma vinha sendo uma coisa mais ou menos constante come signo utilizado na nossa linguagem tropicalista, para comentário de coisas da cultura brasileira. Isso eu não teria nenhum problema de dizer, diria ao Chico pessoalmente. Aliás, eu tenho certeza que êle sabe disso. Está na cara, tem a Carolina no "Baby", jogada entre outros objetos de uso da cidade, a margarina, a gasolina, etc. Na letra do Torquato para Geléia Geral, também tem. Quer dizer, de uma certa forma Carolina já era personagem da tropicália, mas era só como signo de comentário. No momento em que eu gravei a música foi uma coisa inteiramente diferente. É a música, entende? Agora, é lógico, muitas das coisas que nos levaram, pelo menos. a mim, pessoalmente, eu Caetano Veloso, que estou falando sòzinho que me levaram a...

Odete — Está falando sòzinho como?

CAETANO — Sòzinho, agora, sòzinho. Todos os movimentos acabaram, eu estou 'sòzinho. Antes de dezembro sempre que eu falava, sempre, era em noma da tropicália, em nome do movimento que eu estava fazendo. Eu agora estou falando sòzinho. E foi assim que eu gravei Carolina. Aliás, isso é bom para esclarecer ainda mais. Gravei sòzinho. É como Irene. A música Irene eu acho linda. É uma música completamente descomprometida com tôda essa coisa, uma música, de certa forma muito mais ligada ao tradicional, e parecida de certa forma com o clima de Carolina. Mas como eu ia dizendo antes, essa atração pela Carolina, pelo menos de minha parte, é um reconhecimento de integridade da cancão. De como ela é significante, de uma série de coisas, de uma maneira de acontecer poesia no Brasil, de uma maneira da gente sentir as coisas. Eu acho que a gente pode cantar uma música. O que eu acho mesmo é que não se deve ser muito exigente com a poesia no Brasil, nestes dias. Eu acho que uma das coisas mais inexpressivas que pode acontecer no Brasil, atualmente, é a poesia. Eu ache que coisas muito mais belas podem acontecer e têm que acontecer.

Odete — E estão acontecendo.

CAETANO — E estão acontecendo, coisas belas realmente betas e reais. Quer dizer a gente, ficar muito preocupado, sutil, com a poesia, eu não estou tendo paciência. O fato é que me senti desligado de tôda a discussão sôbre cultura no Brasil. Sabe como é? Simplesmente cantei algumas coisas que eu queria cantar. E eu acho que só a Carolina podia dizer isso. Só eu gravar Carolina teria êsse significado claro. Na verdade eu só gravei o disco por causa da Carolina. Por exemplo o Gil gravar um disco eu achei fantástico. Porque o Gil estava numa nova fase, com uma produção enorme.

Odete — Me diz uma coisa Caetano, me lembrei agora de uma certa discussão que ouvi a seu respeito há algum tempo atrás. E tinha curiosidade de saber a sua opinião a respeito. Alguém o viu dando uma entrevista na, televisão e você se vestia já de maneira absolutamente anticonvencional. O entrevistador observou suas abotoaduras e perguntou sôbre elas. E você disse que gostava muito delas achava-as lindas, por isso as comprara. Depois disso ouvi comentários de mais de uma pessoa dizendo que estava alarmada com você, pelo fato de você valorizar tanto uma abotoadura, tendo falado alguns minutos sôbre ela. Essas pessoas estavam como que decepcionadas e não compreendiam como uma pessoa que tinha feito composições e sentido tão profundo e inteligente tivesse essa atitude. Você de fate valorizou as abotoaduras?

CAETANO — Sim, porque eu gostava delas. Eu gosto de celrtos objetos e quando gosto dêles eu os quero para mim. É assim com as coisas que eu uso. Tôdas as pessoas são assim.

Odete — Interessante isso vem de certa forma responder a uma dúvida minha. Eu por exemplo, me julgo uma pessoa absolutamente séria e nada fútil e, no entretanto, uma das coisas que me trazem bem-estar na vida é poder vestir um determinado vestido, ou uma blusa, ou qualquer coisa que me agrade. Isso me invoca um pouco, pois eu logo fico pensando que se eu fôsse uma pessoa realmente íntegra um objeto dêsses não deveria me causar felicidade. Isso me causa urn certo problema de consciência, e vejo que em você não causa.

CAETANO — Eu acho que tôda a apresentação pessoal da pessoa decide muito do bem-estar e da felicidade dela. Eu acho que uma mulher que goste de enfeites, de roupas bonitinhas, poder tê-las é motivo de felicidade para ela. Do mesmo modo que um homem quadrado que gosta de andar de paletó e ser respeitado e aparentar respeitável, se êle fôr obrigado a parecer como um hippie do Picadilly Circus êle vai ficar nnfeliz. Vai sentir-se ridículo e vai sentir-se em vexame. Por que êle precisa daquilo, êle está integrado naquilo e acha que sem aquilo não sente o chão sob os pês. Então a felicidade depende desas coisas, é lógico. Só um santo que não...

Odete — Mas eu tenho observado por exemplo que algumas pessoas que por causa de sua ideologia, são incapazes de usar roupa que não seja fundamental e simples.

CAETANO — Mas elas estão preocupadas sempre com roupa, e têm problema de pecado. Acham que se se enfeitar está pecando diante da ideologia.

CAETANO — E você acha que uma vez essas pessoas se enfeitando estariam pecando contra suas ideologias?

Odete — Elas acham. Eu não acho nada. Se elas se negam a vestir determinadas coisas por problemas de consciência... de qualquer maneira estão sempre preocupadas com roupa. Isso é uma coisa tão importante. uma coisa fundamental na sociedade, uma coisa tão simples. As pessoas se vestem e o modo como elas se vestem significa. Isso é fundamental e importantíssimo. Por isso que os caras aparecerem nus em Hair, é importantíssimo. Porque roupa é muito importante. Uma farda militar é uma roupa. Tem um significado importante. Um general de 60 anos não suportaria estar em Picadilly Circus com os cabelos enormes, de batom, brinco e cheio de panos vermelhos e amarelos pendurados de trapos, com a calça mijada, coisas assim, ou cheio de plumas como uma bicha.

Odete — Mas com relação à roupa, há outra coisa que me causa problema de consciência. É que eu acho que a gente, ao usar o que o comércio nos oferece, estamos alimentando a indústria do dispensável supérfluo, do nada. Você já pensou nesse aspecto?

CAETANO — Eu já sim. Eu acho que tôda a contestação da moda que se tenta fazer, nasce de uma compreensão ou de uma intuição dêsse mecanismo a que você se referiu, entendeu? E que é verdadeiro. que é real e que nós todos somos vitimas disso como de muitas outras coisas. Eu acho que isso tudo é terrível, porque a gente vai na coisa. Depende, se a companhia americana se interesse que você consuma e jogue logo fora, êles dão jeito pra isso e você vai achar bacaninha jogar logo fora, se fôr o contrário você fará o contrário também. Porque êles sabem levar você a fazer isso e está tudo armado para que aconteça assim. Mas acontece que você é uma pessoa assim entende? Todo mundo é uma pessoa assim, dêste mundo.

Odete — Que vive nesse sistema.

CAETANO — O fato de saber disso, pode lhe levar a tentar quebrar com isso, mas não pode lhe levar a crer que "fingir" quo não está nisso significa que você já “quebrou" isso.

Odete — É. Eu já pensei várias vêzes em quebrar. Muitas vêzes tenho vontade de usar um tipo de uniforme que não tem nada a ver com as formas atuais. Uma roupa cuja forma me agrade mais e me seja ao mesmo tempo mais funcional. Mas nunca tive coragem. Por isso talvez uma certa admiração que tenho pelos hippies, não os hippies de atitude, mas os verdadeiros hippies que se vestem da maneira que podem e como bens entendem.

CAETANO — Bom, eu acho que a contestação da roupa que os hippies fazem realmente é uma coisa fantástica mas logo, imediatamente o sistema adquire, assume isso, passa a vender isso também. Se você usasse um uniforme humildemente e fôsse uma pessoa anônima e fizesse êsse protesto em silêncio sòzinha, é um problema seu, é uma espécie de santidade social que você adquiriria,, mas se você é uma pessoa muito conhecida e opta por isso e diz nos jornais que está usando um uniforme porque é contra a moda, isso vira moda. Ou pode vir a virar moda. Quer dizer tôda idéia bacana que você tem serve a êles. Essa é que é a verdade. Até o dia que deixar de servir.

Odete — É isse mesmo...

CAETANO — No principio da conversa sôbre abotoadura eu estava conversando num plano depois eu percebi, você já estava noutro plano, a gente mudou o rumo da conversa.

Odete — Então continue o que você vai dizer.

CAETANO — Agora não me lembro. Deixe eu ver. Você tinha dito que alguém tinha me visto na televisão falando das abotoaduras, não é isso?

Odete — Exato, alguém depois de ouvir você falar das abotoaduras ficou decepcionado por você ter valorizado as abotoaduras, você que tinha feito uma música com o sentido, como por exemplo a Tropicália, como podia valorizar uma coisas dessas...

CAETANO — Ah, era isso. Eu acho que na verdade aquelas cenas de televisão e tôdas as coisas que eu fiz era uma espécie de pequenos escândalos pra mostrar às pessoas que eu assumia a minha mísera condição, entende? Que nós somas pessoas pra quern roupas, essas coisas assim, sao profundamente importantes mesmo. Tem um significado profundíssimo no meu entender e eu tinha vontade de mostrar às pessoas que é assim, entende? Quando eu ia pra televisão de roupas plásticas e cheio de colares e com o cabelo grande, eu não queria que as pessoas notassem que eu estava mais bem enfeitado do que o Edu Lôbo. quando cantava na televisão de smoking e gola roulé, entende? Eu queria dize que tanto faz estar de smoking gola roulé na televisão tocando violão, como estar com aquela roupa que eu estava é estar sempre fantasiado de uma coisa, eu acho que quando o cara sobe pro palco de televisão a fantasia já começou. O cara está fantasiado do que seja.

Odete — Quer dizer que a diferença é que o smoking é uma fantasia muito antiga. Nós estávamos habituados a ver há dezenas de anos e a sua era uma fantasia nova daí o choque que provocava.

CAETANO — Daí as pessoas falam "êle está fantasiado", mas estávamos todos fantasiados. Os hippies são bacanas porque êles fazem uma contestação da roupa e ao mesmo tempo êles fazem o super-requinte da roupa. Fazem a superimaginação livre, a fantasia total, as coisas reinventadas a cada dia.

Odete — Eu tenho visto aqui, é bonito sim.

CAETANO — É divertido. Você vai a Picadilly, você vai a Round house, um luga que tem aqui, que tem uns concertos aos domingos que começam de tarde e vão até meia noite e fica superlotado de pessoas. mas as roupas são tão bonitas, imaginosas, uma coisa fantástica. As pessoa,s dançam, inventam danças, está cada vez mais parecido com o carnaval do Brasil. Todo mundo fantasiado e pulando... ao mesmo tempo com mãos meio Carmen Miranda, meio ballet e com um rebolado, que aquêle meu rebolado do É PROIBIDO PROIBIR é pinto perto do dêles. Um rebolado assina meio meu do É PROIBIDO PROIBIR meio cabrocha de Mangueira.

Odete — Por falar no teu rebolado, eu tenho uma curiosidade pessoal a respeito dêle. Aquêle rebolado foi uma maneira natural sua de dançar ou foi uma maneira criada?

CAETANO — Aquela maneira de dançar foi o seguinte: eu já conhecia, há muito tempo os filmes de Elvis Presley, desde Sto. Amara, e êle rebolava. Isso eu achava bacana embora não gostava dêle na época. Mas eu achava bacaninha o negocio do rebolado dêle, o jeito dêle balancar os quadris. Depois Bethania gostava muito de dançar assim rebolando o quadril pra frente pra trás, fazendo iê-iê-iê assim. Eu via uma pessoa ou outra fazer isso. Aí eu achava bacana, eu ficava com Bethania fazendo em casa, depois nem pensei mais. Não penset em bolar uma dança, mas quando eu vi o espetàculo do Johnny Hollliday no Bâteau là no Rio, êle dançava assim.

Odete — Mas é muito sexy essa maneira de dançar.

CAETANO — É porque mexe os quadris pra frente e pra trás, lernbra logo o ato sexual.

Odete — Pro seu físico, seu tipo, essa dança vai muito bem.

CAETANO — Mas depois de ter visto o Johnny Holliday e como eu queria, fazer uma porção de loucura no É PROIBIDO PROIBIR eu resolvi usar no palco. Inclusive tem um outro tipo de prazer que é a própria idéia de que as pessoas vão se assustar um pouco. Isso me dá um pouco de prazer. Acho que já é o hábito de assustar os outros sabe como é? De certa forma é uma maneira de eu afirmar minha personalidade. Então eu gosto um pouco, não muito. Eu não gosto de causar horror às pessoas, odeio causar ódio as pessoas. Odéio que as pessoas não gostem de mim, sabe como é? Realmente não suporto. Fico preocupadíssimo, acho uma coisa terrível. Eu gosto muito de paz. Eu gostaria de viver em paz com as pessoas. Eu nunca, nunca em tôda minha vida eu briguei com uma pessoa. A única pessoa com quem briguei na minha vida, porque foi absolutamente impossível deixar de fazer, foi com Geraldo Vandré. Hoje em dia e já não ligo mais, já aconteceram tantas coisas. êle já viajou, eu estou aqui na Europa. Nem me lembro mais. A única pessoa com quem briguei na vida em 27 anos. Nunca briguei com Dedé, nunca briguei com Guilherme, nunca briguei com Gil, nunca briguei em casa, nunca briguei com Bethania que brigava com todo mundo, brigava com minha mãe, brigava com a família tôda... quando não briga o bastante ela inventa como inventou com o Guilherme estórias incriveis. Bethania merecia um capítulo à parte, depois dêsse pequeno piche. Bethania devia ser lançada na França.

Odete — Eu acho que ela ainda não foi porque ela não quis. Tenho a impressão que ela não tem paciência para essas coisas.

CAETANO — Ela não tem paciência de se profissionalizar. Mas agora que eu tenho viajado, tenho visto gente importantíssima do mundo todo em cenas, eu vejo que Bethania é realmente uma das maiores presenças em cena deste mundo. É uma pessoa que tem tuna força pessoal, uma magia que é muito raro.

Odete — E a vi agora. em Roma, no documentário que Gianni Arnico fez sôbre a música popular brasileira e ela tem realmente uma máscara fantástica. E a Gal? Eu sei que pra ela resolver qualquer problema relativo à trabalho ela só resolve depois de ter consultado você.

CAETANO — Porque a gente trabalha junto desde a Bahia. Nós temos muita afinidade. Ela tem muita confiança em mim e eu tenho muita confiança nela. Eu sempre tive certeza que Gal é uma cantora extraordinária. Ela tem certeza que eu tenho certeza com relação a ela e então tem uma confiança completa em mim. Por outro lado ela percebe muito as coisas que eu percebo.

Odete — A gente que conheceu a Gal há muito tempo atrás ficava impressionada com a sua timidez. Como é que ela conseguiu dar essa volta e se apresentar agora de maneira tão extrovertida? É inacreditável que seja a rnesma pessoa. Como será que se deu essa virada?

CAETANO — Eu não sei não, porque comigo também, de uma certa forma aconteceu a mesma coisa. Eu sou uma pessoa extremamente tímida, eu não tenho coragem de chamar o garçon e acho que nunca vou ter. Eu vou pra aula de inglês por exemplo e não tenho coragem de me dirigir às pessoas que eu não conheço, tenho -vergonha de falar, sabe como é? em qualquer lugar, sempre. Quando eu estava em S. Paulo, famoso, rico, eu ia pra um restaurante e tinha vergonha de chamar o garçon. Pedia à Dedé pra chamar pra mim. Por exemplo Dedé dizia assim "eu não vou comer essa comida, não tá boa, vou pedir pra trocar”, e eu dizia "não faça isso", eu morria de vergonha de ela dizer ao garçon que a comida não estava boa. Quer dizer eu sou um cara de uma timidez incrível. Tem pessoas com quem eu não consigo falar. Ficar à vontade, que eu fico trêmulo, fico tímido demais. Roberto Carlos eu nunca consegui falar com êle de igual para igual, Chico Buarque, eu nunca consegui falar com êle de igual pra igual, é uma dificuldade incrível tie comunicação, você está entendendo? Eu me sinto tímido, pequeno eu acho que, eu não sei, me esqueço completamente que eu possa ser alguma coisa forte, que eu possa assustar as pessoas pela minha posição pelo fato de ser famoso, rico, como era aquela época em S. Paulo. Eu nunca tinha sensação de que isso podia ser utilizado pra me sentir a vontade. Pelo contrario, era sempre a mesma coisa. era St. Amaro, na Bahia, em tôda parte. Eu sou tímido tá entendendo? E no entanto fiz essas coisas que fiz. Rebolei vestido de plástico no TUCA e na hora que me vaiaram eu respondi, não tive mêdo. Por exemplo o Wilson Simonal é a pessoa mais tranqüila e menos tímida que eu conheço na vida, mas , no dia que êle levou vaia no festival, êle se sentiu em vexame. Êle não gostaria que isso acontecesse com êle nunca. Eu não sei, tenho vergonha, não sei como me comportar com as pessoas, acho que as pessoas estão me observando...

Odete — Eu me lembro quando antigamente você se apresentava as segundas-feiras no Teatro Opinião. Você se apresentava de uma maneira incrivelmente tímida, quase querendo desaparecer...

CAETANO — É, eu sou assina mesmo. Sempre fui muito tímido mas sempre fui meio conflituante. Por exemplo em Sto. Amara, coisas de roupa, comportamento, tudo meu, embora eu fosse quieto, simples, sempre havia alguma coisa que escandalizava.

Odete — No colégio o que é que escandalizava?

CAETANO — As coisas em geral, por exemplo de repente, eu escrevia qualquer coisa na prova de português ou fazia uma piada. Por exemplo, quando eu estava em Sto. Amaro, em 59, o último ano que fiz ginásio, nesse ano todo mundo gostava de Silvio Caldas, o pessoal mais nôvo gostava do Nelson Gonçalves. Eu, Bethania, e mais uma poucas pessoas gostávamos de Maysa. Era muito estranho, tá entendendo? Todos achavam esquisito a principio. Quando João Gilberto apareceu eu adorei e achei uma coisa fantástica de cara e todo mundo achava a coisa mais estranha possível. Em minha casa quando eu botava o disco dele as pessoas diziam "mas o que é isso, esse homem é um louco, cantando todo desafinado, todo esquisito parece um maluco, etc., e tal".

Odete — Eu me lembro que a primeira vez que botei um disco de João Gilberto na vitrola de casa, minha empregada teve um acesso de riso que durou horas. Ela vinha me perguntar as gargalhadas o que era aquilo, se por acaso era gente cantando...

CAETANO — Bom, a gente estava falando isso por causa de Gal e Gal também é assim como eu. Quer dizer, Gal é uma pessoa muito original, muito diferente. Inclusive ela não é tímida, ela é apenas calada, silenciosa. E isso de se transformar, acontece normalmente, não sei como explicar, sei lá. Você vai crescendo e você se encaixa numa coisa que é você, tá entendendo? Acho que é mais o acaso. Eu acho que se você perguntar porque aconteceu isso comigo e porque aconteceu com Gal, que de repente mudou, ficou extrovertida, já que eram pessoas tão tímidas, talvez eu respondesse assim “foi porque deu pé”. Eu acho que essa é a melhor resposta “deu pé”. Chegou um momento em que aconteceu e isso sou eu, e isso é Gal.

Odete — É como se de repente a pessoa se enquadrasse nela mesma, e quando isso acontece a pessoa se sente em liberdade para ser, cria coragem de ser ela mesma. Você ama a vida, Caetano?

CAETANO — Amo sim, eu gosto muito. Eu tôda vida tive horror a morrer. Tenho vontade de continuar vivendo, vivendo, eu acho bom sentir eu. Eu gosto de sentir que estou vivo. For outro lado, como as coisas vão sempre acontecendo, sempre vão me fascinando também. Eu nunca me senti desprezando a vida.

Odete — O fato de você estar casado, ter a sua muher ao lado, ainda você a viver longe do Brasil, você se sente melhor?

CAETANO — Muito mais, muito mais. Ficar aqui sòzinho eu não saberia. Sem Dedé seria impossível.


O PASQUIM, n. 17, 16 a 22 de outubro 1969