ACONTECE QUE ÊLE É BAIANO

Texto de Décio Bar

REALIDADE – dezembro 1968

Caetano Veloso queria ser pintor, acabou poeta e cantor. Agora é o teórico-mor do tropicalismo, procura os caminhos da síntese de Vicente Celestino e dos Beatles. Tudo isso talvez se explique de maneira mais simples:

  • "Vocês estão por fora!"

    Na sala do grande apartamento há um disco estranho rodando na vitrola, e nêle não se ouve música, apenas a voz de desespêro de um homem tentando abafar os gritos de uma multidão enfurecida:

    É esta a juventude que quer tomar o poder?!... Vocês estão por fora!...

    A mesma voz vem agora do quarto ao lado, mais próxima, mais branda, sobrepondo-se ao som da gravação:

    Dedé, desliga isso, minha nega... Em matéria de velharia, eu prefiro Carmen Miranda...

    Há humor e certeza na frase, como em tudo que êle faz ou diz, porque êle é Caetano Veloso, a mais discutida personalidade musical desde que Roberto Carlos gravou o Calhambeque. Ainda há poucos meses, o discurso que interrompeu sua apresentação no Festival Intemacional da Canção foi considerado como o escândalo do ano, o maior impacto dos últimos tempos no meio artistico nacional, mas êle já o considera uma "velharia, peça de museu". É que já se acostumou a causar impacto, a conviver com o escândalo. Afinal, êle é Caetano Veloso.


    Horas de rádio, dias de carnaval

    O garotinho que, num dia de agôsto de 1942, vinha ao mundo na cidade de Santo Amaro da Purificação, Bahia, chorava como tôdas as crianças do mundo, como o haviam feito os seis irmãos que o antecederam. Nem no dia de seu batismo se apresentou com maior discrição ou compostura, comportamentos que seriam de se esperar de alguém que acabava de receber um nome pomposo como o seu: Caetano Emanuel Teles Vianna Veloso, um varão a mais numa cidade conhecida por sua pobreza e pela qualidade de sua cachaça.

    Minha infância seria um tédio para um psicanalista. Joguei bola, soltei pipa, fui para a escola, não gostei da escola... tudo como todo mundo.

    Hoje, os velhos moradores da cidade lembram alguns detalhes onde se distinguia aquêle garôto magro e cabeçudo entre a normalidade de todo mundo. Eram as horas que passava grudado ao rádio, e seu particular interêsse pelo dias de carnaval.

    Bem, aí de fato eu me esbaldava. Não havia na cidade quem não ficasse curioso em saber que fantasia eu iria inventar naquele ano. Eu era muito bom nos disfarces e, às vêzes, com uma velha camisola de minha irmã, um chapéu de mamãe, a cara tôda pintada, ninguém me reconhecia. A turma da cidade não conseguia entender como eu podia me preocupar tanto com essas coisas do "maricas", e no dia seguinte me atracar com tanto entusiasmo num jôgo de futebol


    A escala da escola

    Caetano fêz a ginásio e completou o clássico em sua cidade mesmo. Seus boletins revelam um aluno médio, destacando-se apenas em línguas e composição. Nas aulas, porém, sentava-se nas últimas carteiras o, quando não estava perdido em profundos devaneios, era o que se costuma chamar do "o palhaço-da-classe". Os professôres chegavam a respirar de alivio quando o viam num canto da sala, rabiscando o cademo a êsmo, o olhar vago, a atenção muito longe da lista de capitais da Europa que estava sendo ditada à classe. Desenhava muito, lia demais, gostava do ser notado. Aos dezoito anos, tinha as modestas pretensões da idade: modificar o mundo e ter sucesso no amar. Queria ser pintor, mas não um simples pintor a mais. Queria ser um artista pelo menos maior que Van Gogh ou Portinari. Acabou seguindo para Salvador, para estudar Filosofia.

    O ano de 1960 era o pico de um ciclo de ufanismo que se infiltrara em todos os poros da consciôncia nacional. O próprio Malraux já entendia o Brasil como um produto de exportação, dando-lhe de graça um nôvo slogan: "Um país a caminha do seu grande futuro". A década do 50 chagava ao fim e lançara uma geração nascida durante a guerra.

  • - Eu achava importante conhecer as maquetes de Brasília, o respeita com que os estrangeiros passavam a reparar em nossa arte, em nossa cultura. Como êles se interessavam, passamos a nos levar mais a serio. A Bossa Nova aparecia para o Brasil como a máquina a vapor para a Inglaterra. Era um marco a partir do qual tudo era referenciado. Naquele tempo, tudo era Bossa Nova, como sinônimo do diferente, de novo. Seria o que hoje chamamos "pra frente".

    Na universidade abandonou seus sonhos de se tornar um artista plástico e passou a se dedicar á tentativa do entender a fenômeno de uma música feita no Brasil e que incorporava o balanço perseguido pelas gerações novas do mundo inteiro. Nas festinhas promovidas pelo pessoal da faculdade, as discussões sôbre a cultura popular, as conversas acaloradas sôbre Hegel e Lukács, os cochichos dos namorados, tudo se calava para dar atenção à voz pequena de um conterrâneo já ilustre - João Gilberto.

    - Era muito engraçado, pois éramos uma turma que fôra reconhecer o valor de Noel a partir do fato de êle ter sido universitária de medicina. Nós vibrávamos com Buñuel e nos envergonhávamos do prazer que nossos patrícios sentiam ao verem as chanchadas da Atlântida e os filmes de Mazzaroppi, muito embora não perdêssemos um só. Gostávamos do jazz maldito e de vanguarda e dançávamos ao som de Ray Coniff. Veja bem que o purismo nacional era tanto, que se perdeu a oportunidade de lançar a Bossa Nova como gênero dançante. Foi por essa época que comecei a tocar violão e a me preocupar mais com a música. Eu começava a descobrir um Brasil culturalmente nôvo, em que o que havia de mais tradicional podia ser trabalhado da maneira mais modema, como acontecera com Lorca na Espanha, como já o fazia, Guimarães Rosa, por exemplo. Havia um fato a mais: eu morava na Bahia que fôra Caymmi, sempre seria candomblé e folclore, mas ao mesmo tempo já dera João Gilberto. Me preocupei por muito tempo com a possibilidade da tratar motivos folclóricos, temas de ciranda de Santo Amaro, com uma óptica de João Gilberto. Na verdade, me preocupei mais em dar essa idéia aos outros ou em incentivar os que já estivessem fazendo isso. Eu mesmo nunca cheguei a fazê-lo. Naquele tempo, era muito resguardado.

    Mora na filosofia

    Só não havia resguardo então em relação aos convites para comparecer às festinhas "sem esquecer o violão". Para que Caetano tocasse e cantasse, não era preciso muita insistência. Isso continua até hoje. Numa roda, é sempre o primeiro a procurar pelo violão geralmente arrebatado das mãos de Gilberto Gil, outro "fominha" famoso. é capai de cantar uma noite inteira, se lhe permitirem.

    Em 1964, juntamente com Gil - então cantor de jingles e estudante de administração de emprêsas -, Tomzé, Pema, Pity e outros, Caetano participa dos recitais que marcaram a inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador.

    - A gente fazia 1á uma réplica dos shows do Beca das Garrafas, no Rio, ou da Teatro Paramount, em São Paulo. Lá também usávamos como titulo um trocadilho referente à faculdade que patrocinava. Por exemplo, um dêles era "Mora na Filosofia". Os meios de comunicação, especialmente o disco e as revistas, unificavam culturalmente paulistas, cariocas e baianos.

    Uma figura que despontara como estrêla dos tempos do Vilá Velha viera ao Rio em 1965 para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião. Era a caçula da familia Velosa, Maria Bethania. Sua voz agressiva e sua presença em cena chamaram a atenção do público para duas músicas em particular - Carcará e é de Manhã. A primeira era de João do Valle, aquele crioulo simpático que aparecia em cena. A outra era de um tal de Caetano Veloso, do quem o máximo que se sabia era ser o irmãs de Maria Bethânia, a cantora de Carcará. Por essa fama, mais seu jeito acanhado e sorridente, Caetano acabou acompanhando a equipe até São Paulo. Nesta cidade, resolveu aproveitar a antiga experiência e musicou Arena Canta Bahia, participando do espetáculo também como ator o diretor de cena.

    - Foi um negócio "superfestivo", mas, pr'aquele tempo, eu acho até muito normal. Eu estava descobrindo uma cidade, descobrindo uma turma com o mesmo tipo de inquietação dos meus amigos que deixara na Bahia. Tôda noite, havia uma reunião no bar em frente ao Teatro de Arena, a Redondo. Entrei então em contato com Chico Buarque, Toquinho, tôda uma turma que, de uma forma ou de outra, estava tentando fazer algo de diferente na música popular brasileira. Embora já tendêssemos cada qual para o seu próprio caminho, havia um ponto em que concordávamos perfeitamente: era preciso um aprofundamento em nossos recursos técnicos, de modo que nossa comunicação não ficasse prejudicada por deficiências ou ignorâncias. Chico resolveu estudar mais violão, Toquinho passou a se interessar mais pela técnica de composição, e eu rne atirei a ler tudo quanto fôsse poeta, tentando aproveitar uma poesia já consagrada como material musical. É que eu achava uma proeza e um desafio o sucesso de alta qualidade literária da dupla Baden -Vinicius. Ainda tinha dúvidas se o povo aceitaria letras tão avançadas que não viessem de um poeta já consagrado.

  • Suzana de Moraes produziu em 1965 o show Pois é, no Rio de Janeiro. Caetano foi chamado a escrever o roteiro juntamente com duas pessoas que seriam, depois, seus parceiros mais freqüentes, além de Gilberto Gil -- Torquato Neto e José Carlos Capinam. A grande afinidade que depois revelariam em tantas composições, como Mamãe, Coragem ou Soy Loco por Ti, América, não aparecia ainda naquela época: - O show era em grande parte sôbre Vinícius, e cada um de nós tinha uma visão particular do poeta. Nos ensaios, a gente quase se pegava a sôcos. Êsse, aliás, foi um dos tempos mais loucos da minha vida. O Rio de Janeiro estava fervendo de nôvo. Todo mundo tentava entender o que passara a acontecer de diferente depois de 1964, tentava tomar pé da situação. A Bossa Nova tinha perdido seu sentido libertária, partindo para um tipo de música quase acadêmica, buscando dessa forma sensibilizar o povo que estava mais preocupado com coisas novas, como os Beatles ou Roberto Carlos, por exemplo. Então, ninguém se dava conta de que a evolução não parara, que Roberto Carlos era o João Gilberto da Jovem Guarda. Essa, então, era combatida como se fôsse uma praga ou uma heresia. A meninada procurava arrumar um sotaque nordestino para lastimar a falta da reforma agrária. Êles se preocupavam com um detalhe, ao passo que Roberto Carlos e a juventude em geral já mandavam tudo para o inferno. Roberto derrubou padrões estabelecidos, oficializando a tendência irreverente do brasileiro em relação à aparência das chamados homens sérios. Êle vinha para impor um gôsto livre, consequentemente um uso mais livre.

    Um dia, um prêmio

    Caetano confessa que então não se detivera sôbre o fenômeno, apesar das observações freqüentes de Maria Bethania: "Quente é a guitarra elétrica". Em 1965, o que propunha em um Festival de Música Popular era ainda o fruto de suas pesquisas literárias. Não é de se estranhar que sua composição Um Dia tenhá conquistado o prêmio de melhor letra. Uma foto da época mostra-o muito engravatado e de cabelos rentes à cabeça, recebendo com um sorriso encabulado o seù prêmio.

    O ano seguinte marcava o definitivo sucesso de Elis Regina. Ela cantava músicas de Caetano e Gil, lançando-os em seu programa. Gil estava em São Paulo, transferido da Bahia para ser administrador de uma fábrica de sabonetes. Apresentado por Edu Lôbo a Elis, suas aparições no programa "O Fino..." causaram apreensões na firma onde trabalhava. Afinal, não ficava bem um chefe de seção aparecer na tevê cantando aquelas coisas "tão subversivas e incompatíveis com o espírito da emprêsa". Recomendaram-lhe que desistisse em favor de sua carreira tão promissora na fábrica, pois Gil era um funcionário modêlo. Demitio-se no mesmo dia, e a necessidade fêz com que se tornasse o compositor sério que é até hoje.

    - Todo mundo comenta, lembrando nossas participações em programas e shows daquele tempo, a extrema simplicidade com que eu e Gil aparecíamos perante o público. Na verdade, nada daquilo era intencional. Êle passou quatro meses esperando uma indenização da fírma onde trabalhava, enquanto eu me agüentava com a cara e a coragem no Solar da Fossa, no Rio, almoçando na casa de um, jantando na casa de outro. Para nós, só existiam duas possibilidades: ou nós éramos tão bons como pensávamos e acabaríamos por fazer sucesso, ou nosso fim seria a sopa-dos-pobres temperada com muita frustração.

    Mas aconteceu mais um Festival, Gil foi premiado e Caetano obteve o quinto lugar. Veloso já era conhecido como um cantor de voz baixa e letras difíceis, o irmão de Maria Bethania, a cantora de Carcará. Além disso, era o compositor de É de Manhã, Um Dia e Boa Palavra, amigo de Gilberto Gil, o autor de Lauvacão.

    - Especialmente esta música deu ao Gil a oportunidade de comandar um programa de televisão em resposta ao "O Fino... " Eu vinha do Rio tôda semana para fazer o programa, e já vinha de farda, quer dizer, já vinha de smoking. O programa acabou esvaziando logo, mas só depois é que a gente entendeu o porquê. Nós estávamos tentando alimentar uma guerra que, se já não estivesse perdida há muito tempo, era pelo menos sem sentido, que era a luta contra a Jovem Guarda e seu principal armamento - a guitarra elétrica.


    A voz do sucesso

    O ano de 1966 pode ser tomado como limite final de um período cultural que trouxera em seu bôjo o prêmio de Aldemir Martins na Bienal de Veneza, a inauguração de Brasília, a eclosão de Antônio Carlos Jobim como sucessor - juntamente com João Gilberto - de Ari Barroso, como exemplo de música brasileira no exterior. Acontecia o histórico e extremamente controvertido recital no Carnegie Hall, Carlos Lyra já tocava com Stan Getz, João já se mandara definitivamente para fora do Brasil. A voz brasileira de sucesso lá fora era de uma môça que passara despercebida no País e que mandava o seu recado em inglês, Astrud Gilberto.

  • - Por aqui, havia a maior confusão. O pessoal que comprava os discos dos Beatles e dançava Roberto Carlos na boate, por uma crise de consciência, pensando estar traindo a Pátria, resolveu retroceder todo o caminho percorrido pela Bossa Nova. Diziam que bom mesmo e .autêntico era o."sambão''. No duro mesmo, ninguém mais tinha certeza de nada. Terminado o programa com Gil, comecei a trabalhar mais assiduamente em São Paulo, como free-lancer da TV Record. A turma da Tradicional Família Musical achava que era uma política da emprêsa apresentar eu, Caetano Veloso, premiado em festivais de música popular brasileira, em programas ao lado de Roberto Carlos. O que não perdoavam mesmo era o fato de eu ser baiano. Achavam o fim um compositor da estirpe dos Caymmi e João Gilberto se meter a cantar em inglês. E sem sotaque.

    A palavra é Alegria, Alegria

    Um programa de tevê alcançava os mais altos índices do IBOPE em 1967. Chamava-se "Esta Noite se Improvisa", e nêle se reclamavam grandes conhecimentos musicais aliados a uma memória bastante rápida. Caetano revelou-se um campeão de primeira, quase sempre disputando as finais com Chico Buarque e Carlos Imperial, curiosamente três tendências da música popular brasileira até hoje.

    - Foi nesse ano que aconteceu o estalo. O público começou á reparar em mim, graças a um detalhe quase circense, ou seja a facilidade que tenho até hoje de decorar letras de músicas. Depois, passaram a notar meu aspecto plástico - minha magreza e meu cabelo que finalmente tinha recebido a independência do pente e da tesoura. O pessoal do auditório costumava jogar flôres e bombons para os seus ídolos. Para mim, jogavam pentes aos montes. Comecei a juntar as duas coisas: havia um efeito circense que era a minha capacidade de lembrar, a partir de uma palavra, a letra de velhas melodias de Orlando Silva ou Carmen Miranda; havia também o efeito plástico de minha magreza e minha cabeleira. Faltava apenas um efeito sonoro que realizasse a grande síntese. Eu descobria que, quando falava da Bahia, todo mundo pensava naquela Bahia pintada por Ari Barroso, "das igrejas tôdas de ouro". Afinal de contas, eu era baiano, sim, mas também um jovem de vinte e poucos anos morando na cidade mais cosmopolita da continente, respirando o ar das fábricas, o universo da tevê, das histórias em quadrinhos, da propaganda, e, sobretudo, vivia num lugar que tinha como fundo musical o som das guitarras elétricas.

    A descoberta disso tudo foi acelerada pelo conhecimento de outras fôrças inconformadas com o rótulo que lhes atribuía o público. O maestro Rogério Duprat era catalogado como um músico de vanguarda formado no Europa; o conjunto Os Mutantes era apenas um trio que acompanhava Ronnie Von; os Beat Boys só se destacavam por serem muito cabeludos e argentinos; Gilberto Gil garantia o respeito por ser o autor de Louvação; Caetano Veloso era o baiano da boa memória, o irmão de Maria Bethania, a cantora da Carcará. O ano de 1967 iria juntá-los todos como iniciadores do ciclo de "festivaia" no Brasil.

    A esquerda festiva encontrou no Festival de 1967 sua primeira oportunidade de expor seus recalques e preconceitos. Apesar de tudo, cantei com os Beat Boys Alegria, Alegria e fui classificado em quarto lugar. Gil cantou Domingo no Parque com Os Mutantes e ganhou o segundo. Rogério Duprat foi considerado o melhor arranjador do Festival. Foi a glória, mora.

    Aparecia a grande opção para a música brasileira depois das lutas entre a Bossa Nova e o samba tradicional, da Bossa Nova contra a Jovem Guarda. Todo mundo discutia se aquêles sons eletrônicos, aquela letra fragmentada podiam ser considerados como realmente brasileiros.

    Os alunos da cadeira de Literatura da Universidade de São Paulo, após longo estudo do fenômeno, concluíam que Alegria, Alegria nada mais era que "um hinos à alienação" onde aparecia "o fluir da existência transpassando o caos". Já o Professar Chaim Samuel Katz comentava a respeito de Caetano: "Suas letras não podem ser tomadas ao nível do inconsciente. Ele é o menos alienado de todos".

    O escândalo está lançado, e daí em diante jamais vai deixar de pontilhar a carreira do filho de Santo Amaro da Purificação. Quando os puristas já estavam prestes a aceitar sua música como algo mais do que um jingle da Coca-Cola, êle volta à carga compondo especialmente para Ronnie Von, desmistificando a rosa natural em favor da flor de plástico. Seu cabelo continuava crescendo, facilitando o julgamento da crítica perplexa: "Se êle tem algum negócio com o zelador, o problema é dêle..." O problema era entender Caetano Veloso, êsse baiano supostamente ligado a uma linha folclórica e que cantava com conjuntos de ié-ié-ié. Esse quarto colocado em um Festival, que conseguia, ao mesmo tempo, o aplauso do grande público e dos estudiosos mais exigentes. Pouca gente ainda se lembrava dêle como o rapaz tímido que viera da Bahia, o irmão de Maria Bethania, a cantora do Carcará. Caetano disputava com Roberto Carlos e Chico Buarque a preferência do povo. A massa ficava com o Rei da Juventude, os universitários se ligavam muito mais ao Chico e, afinal, quem gostava de Caetano Veloso?

  • O amor sem paz

    Quem gostava de Caetano, e já há muito tempo, era Dedé, uma loirinha de cabelo curto que o conhecia desde quando êle vagava pela noite da Bahia, fazendo serenatas com sua turma. Dedé fôra quase uma irmã de criação de uma menina que sempre preferira o violão aos livros de estudo - Gal Costa. O namôro fôra um seriado de encontros e longas ausências, enquanto êle corria do Rio para São Paulo, de São Paulo para Salvador. É que Caetano, quando viaja, nunca garante a data do regresso. Uma vez, foi a Salvador passar o carnaval e só voltou um ano depois. Há muitos anos Veloso conhecia Dedé, mas o público conheceu-a de repente; quando correu a notícia de mais um escándalo do baiana: êle ia se casar.

    - Eu acabava de, finalmente, reencontrar a linha de evolução que julgava brotar da Bossa Nova. Tinha conseguido uma grande certeza em meu trabalho e, ao mesmo tempo, perdera o mêdo do meu amor. Tudo isso merecia uma festa.

    Foi certamente um estranho tipo de festa. Tratava-se do casamento do Sr. Caetano Emanuel Teles Vianna Veloso com a Srta. Idelzuite Gadelha. Na verdade, casavam-se Caetano e Dedé, e foi por isso que a cidade de Salvador fechou o seu comércio, os estudantes abandonaram as escolas, o prefeito de Santo Amaro da Purificação decretou feriado e colocou oito ônibus à disposição do povo.

    Na igreja totalmente apinhada de jornalistas, cabeludos, fãs à beira do desmaio, o padre proclamava a quem quisesse ouvir:

    - Se a noiva vier de míni-saia, eu não realizo a cerimônia!

    Dedé chegou com um manto cobrindo sua míni-saia, poucas flôres na mão, muitas pintadas no rosto. O noivo apareceu com uma camisa vermelha de gola alta. Alguém observou que, com aquêle traje,_a cerimonia não se realizaria. Caetano então trocou sua camisa com a de um irmão e se achou mais discreto. Estava de abóbora.

    - O negócio foi tão confuso, que até hoje eu não tenho certeza se casei de fato, Depois, foi todo mundo pra praia, pra comemorar.

    Logo em seguida, o casal regressava a São Paulo. Era assim que Caetano casava. Se a cerimônia fôra longa, sua vìagem de núpcias foi uma das mais rápidas da história - durou o tempo de vir de Salvador a São Paulo. A jato.

    - Por que deveriam duas pessoas que se amam se isolar totalmente da sociedade, como se estivessem cometendo algum pecado?...

    Fora do ar

    O sucesso com que foi recebido de volta pelo público mostrou que êle estava certo ao quebrar uma regra básica do show business, a regra de que um ídolo não pode casar. Sua espôsa foi a prirneira a notar isso.

    - O charme do Cae parece que cresceu. Em todo lugar que a gente ia, eu sentia uma grande inveja por mim e um grande carinho por ele. Se ôlho gordo matasse, êle agora já era viúvo.

    Após o seu regresso, prometeram-lhe um programa só dele. Enquanto o programa não chegava, aparecia como convidado em outros musicais da televisão, e o tempo ia passando. Caetano tinha fama de preguiçoso, mas, na realidade, era apenas "desligado". Quando lhe anunciavam mais um adiamento da estréia de seu programa, limitava-se a comentar simplesmente:

    - Não faz mal, não vou morrer por causa disso.

    Com essa resposta, teria perdido a maioria de seus compromissos, não fôsse a atenção do empresário e grande amigo Guilherme Araújo.

    - Caetano até hoje não tem muita noção de dinheiro. é capaz de convidar um amigo "duro" para jantar e depois descobrir que esqueceu a carteira. Seus sonhos de compra se limitaram a um automóvel e uma alta fidelidade. O carro podia ser velho, mas a eletrola tinha que ser a melhor do mundo. Por questão de princípio, não faz shows de caridade, mas é incapaz de resistir a um vendedor mais insistente. Nunca o vi discutir um preço ou conferir um trôco.

  • Instalado num grande apartamento da Avenida São Luís, em São Paulo, Caetano ficou aguardando a estréia de seu programa. Quando percebeu que os adiamentos se sucediam, rompeu o contrato com a emissora. Junto com ele saía Gilberto Gil, companheiro de tôdas as horas, e Gal Costa, que era sua cantora favorita.

    - Eu e Gil estávamos fervilhando de novas idéias. Havíamos passado um bom tempo tentando aprender a gramática da nova linguagem que usaríamos, e queríamos testar nossas idéias junto ao público. Trabalhávamos noite adentro, juntamente com Torquato Neto, Gal, Rogério Duprat e outros. Ao mesmo tempo, mantínhamos contatos com artistas do outros campos, como Gláuber Rocha, José Celso Martinez, Hélio Oiticica e Rubens Gerchman. Dessa mistura tôda nasceu o Tropicalismo, essa tentativa de superar nosso subdesenvolvimento partindo exatamente do elemento "cafona" da nossa cultura fundido ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras e as roupas de plástico. Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo.

    A produção musical resultante desta pesquisa criou fanáticos entusiastas ou ódios mortais. Jamais a indiferença. A maior reprovação vinha da chamada "esquerda festiva", que o acusava de farsante. O povo, porém, cercava-o de carinhos. Certa vez, jantando num restaurante do Guarujá, foi chamado ao telefone. Preocupou-se em atender logo - o que é raro, pois detesta falar ao telefone. Tinha curiosidade em saber quem o descobrira ali, e como. Pouco depois, voltava à mesa encabulado. Eram as telefonistas do Guarujá que estavam ligando a todos os restaurantes da ilha, apenas para ouvirem sua voz. Do público não tem queixa, mesmo quando o vaiam. Acha que de sua música decorre uma série de posições morais, estéticas e políticas, que não são fáceis de serem aceitas ou mesmo entendidas, mas não se julga um gênio incompreendido.

    O grupo tropicalista

    - Tôdas as vêzes que divergi de Caetano - diz Torquato Neto - e tôdas as vêzes que todo mundo duvidou e só êle tinha certeza, ao final o que se viu foi o mesmo, êle é que tinha razão.

    Os amigos de Veloso acabam por compor uma espécie de turma que o acompanha onde quer que se apresente. Tôdas as noites, aparecem em seu apartamento - mesmo que Caetano não esteja - para ouvirem novos e velhos discos, para trocar idéias, ou, simplesmente para jogar pingue-pongue. Mas, quando êle está na cidade e não está cansado demais ou trabalhando em uma nova melodia, o dia amanhece e ainda o encontra disputando o violão com Gilberto Gil, discutindo cinema ou política com Torquato Neto, apreciando as trapaças de sua mulher Dedé no jôgo de biriba. Bebida alcoólica, só vinho e cerveja, nada de uísque.

    Enquanto vai fumando um cigarro atrás do outro, Caetano fala de seus planos e preferências. Adora Chico Buarque, e não entende porque ninguém acredita nisso. Como cantoras, escolhe um trio - Maria Bethania, Gal Costa e Billie Holiday. Cantor é João Gilberto ou Jimy Hendrix. Os Beatles ainda são um exemplo. Chamado de alienado pela esquerda, de comunista pela direita, resume sua posição em um lema - "o exercício da liberdade total". É dentro dêsse conceito que se permite aparecer tanto num programa do Chacrinha como numa passeata ao lado de Vladírnir Palmeira. Acima de seu trabalho, só seu amor e sua amizade.

    - E Deus, Caetano?

    Deus? Deus está sôlto.

    [Realidade, ano III, número 33, dezembro 1968]