ARAÇÁ AZUL (1972)

texto de Caetano Veloso

O Araçá azul foi uma retomada dos pensamentos que vinham a minha cabeça antes de ser preso, que de uma certa maneira me aproximava da poesia concreta, do experimentalismo, das letras de poucas palavras. Eu disse: "Vou fazer um disco ostensivamente experimental", e assim o fiz. Inclusive, "experimentando" no estúdio, sem amparo de ninguém, de nada. "Vou sozinho com meu violão, meu corpo e minha voz. Depois, se precisar, chamo músicos para colaborar."

Foi o que fiz. Fiquei uma semana no Estúdio Eldorado, em São Paulo. não compus nenhuma cancão antes de entrar em estúdio. Comecei com aquelas faixas que são vocais, mas que são sem letras e sem melodia. Conversas, sons de vozes superpostas, coisas assim. Agora, pouco antes de fazer Noites do Norte, por pouco não retomei a experiència de fazer um disco nos moldes de Araçá azul, mas em outro estágio, com maior conhecimento de sonoridade etc. Não o fiz porque ao me deparar com o texto do Joaquim Nabuco, optei por fazer uma cancão sobre o texto dele, que me levou a compor outras canções, a outras que eu quis cantar, e terminou virando um disco de canções — sem duvida, o que farei com mais frequência, porque gosto de canções. Quando gravei Araçá azul, eu precisava fazer um disco exatamente assim. Eu estava de volta ao Brasil, livre pela primeira vez desde que tinha sido preso. Foi uma descarga da tensão, diante da prisão, era um sentimento que estava represado. Esse é o primeiro disco meu feito no Brasil em que eu toquei violão. Depois de tocar violão na Inglaterra, nos dois discos que fiz por lá, me senti desinibido e com coragem para tocar em discos meus — trabalho que antes era confiado a outros músicos, convidados para isto.

O aval dos produtores de meus discos gravados em Londres me encorajou a tocar, a vencer a timidez, que não era só minha, mas dos brasileiros. A bossa nova tirou o essencial dessa timidez, mas não tirou tudo; a bossa nova se resolveu, mas não resolveu o Brasil. Mas trouxe um padrão de resolução do qual o Brasil ainda precisa se aproximar.

Por um lado, os ingleses e os americanos eram ignorantes quanto ao que se fazia no violão brasileiro — daí aceitarem o meu violão de "baixa qualidade", mas, por outro lado, também eram desassombrados quanto a isso. Eles achavam que o meu não só !não era de baixa qualidade, era muito original, pois tinha a ver com a minha voz. Meu tocar tinha características que outros violonistas não possuíam.

No Brasil, você tocando de uma maneira que não soava essencialmente profissional causava insegurança nos produtores; isso numa época em que nos Estados Unidos um dos maiores nomes era Bob Dylan, que tocava aquela gaita e aquele violão, cantando com aquela voz. Se tivessem imposto um violonista e um gaitista de estúdio bons, profissionais, jamais teria existido Bob Dylan.

Aqui, não teria existido Nelson Cavaquinho.


depoimento de Caetano Veloso a Charles Gavin r Luís Pimentel em TANTAS CANÇÕES (livro da Caixa TODO CAETANO 2002), pagg. 43, 45