Caetano Veloso (1967)

texto de Caetano Veloso

Meu primeiro disco tropicalista! Enquanto gravava Domingo, eu compus Paisagem Útil e comecei a fazer Alegria, alegria, já estava voltado para o tropicalismo. Quando foi lançado, eu já estava em outra, com a cabeça no meu disco individual, que saiu em 1967. Comecei a andar com o Rogério Duarte e a gente só falava em música comercial, sambas-cancões bregas e Roberto Carlos — sobretudo porque Bethânia nos chamou a atenção para o Roberto.

Eu já andava por demais interessado em sair daquele cerco, daquele mundo da MPB dita de boa qualidade. Até hoje, na verdade, vivo esperneando para sair deste negócio, mas e difícil. Essas definições que o mercado preestabelece são terráveis. No disco que fiz com Jorge Mautner, gravamos uma canção que poderia perfeitamente tocar como brega, em rádio brega. Mas não toca, "porque nós não pertencemos ao universo brega". Como se você estivesse preso. lgual às grades em nossos prédios, que nos protegem dos favelados, e os blocos de cimento que os traficantes colocam para fechar a favela do resto da sociedade.

O tropicalismo queria fazer misturas. Queríamos, sim, ouvir e curtir Roberto Carlos. Tínhamos acabado de descobrir os Beatles. Achávamos que a criação tinha que permitir as experiencias, porque o grupo que fazia o que era considerado bom e de alto nível tinha, de uma certa forma, um "certificado de qualidade" que era prévio à experimentação da obra na vida real.

Por causa dos Beatles, o rock'n' roll ganhou no mercado um status que não tinha antes. Era considerado meramente comercial, lixo, não chegava a preocupar. Elvis Presley, Bill Haley, ninguém se preocupava. Mas pelo fato dos Beatles terem feito um grupo, cantar em grupo — coisa de inglês, não eram tão individualistas quanto os americanos — eles ganharam aquela respeitabilidade por parte dos americanos. A proximidade com a cultura erudita num europeu é automática. É diferente do americano. Logo estávamos percebendo a presença da música clássica europeia — tradicional e de vanguarda — dialogando com o "lixo do lixo" que era o rock'n'roll.

Os tropicalistas queriam furar o cerco que separava aquilo que era considerado respeitável, de boa qualidade, de bom gosto do resto da criação. Esse "resto" nem sempre era considerado pela turma com quem a gente convivia. As vezes, tinha um iê-iê-iê de Roberto Carlos, que estava estourando entre as empregadas domésticas, mas a nossa turma de música popular não conseguia ver se aquilo tinha ou não força poética. E, as vezes, tinha muita força poética. Por outro lado, como cantor o Roberto Carlos era muito bom; mas isto não podia nem ser dito naquela época. Era tabu. Queríamos furar aquilo, gostava de um samba-canção que a Lana Bittencourt cantava, mostrar a força poética que vinha de áreas "não tão respeitáveis". Não éramos acompanhadores do que se passava com o rock no mundo. Começamos a prestar atenção depois dos Beatles.

Estávamos conscientes de que vivianos um período de extrema violência, estávamos sob uma ditadura militar. De certa forma, achávamos toda essa atitude de um grupinho, em Ipanema, fazendo música boazinha, de boa qualidade, politicamente correta, dizendo as coisas certas a respeito do que deve ser dito e com um grau de sofisticação harmônica que não metesse vergonha para quem conhece o jazz pretensioso do beebop (sic), muito pouco para nós, do movimento tropicalista. não queríamos representar aquilo — que considerávamos a tradição de uma elite pequena e que queria permanecer pequena —, queríamos quebrar com aquilo e trazer uma forma de expressão artística na música popular que contivesse violência: atitude, poética e sonora.

Eu, pessoalmente, saltei do disco Domingo, que e cool e bossa-nova, para um disco exatamente anti-cool — apesar de defender o que havia de mais radical na opção cool. Um trecho do que escrevi na contracapa do disco diz assim: "quando a gente não tem nenhuma necessidade de ir para os states, não ha mesmo mais esperança. eu gostaria de fazer uma canção de protesto, de estima e consideração, mas essa língua portuguesa me deixa louco-rouco, os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez transatlântica, e, no entanto, ELE é um gênio. quem ousaria dedicar esse disco ao JOÃO GILBERTO?" Todo o texto é escrito com letras minúsculas, menos o "ele" e o nome do João. Em maiúsculas, como se fosse Deus mesmo.

Esse disco contou com a participação do grupo Os Beat Boys, formado por músicos argentinos, que tocaram comigo no Festival da Canção, em Alegria, alegria: Marcelo, bateria;Mauricio, guitarra; Toyo, teclados; e Willy, contrabaixo; além do Tony Osanah, que ficou no Brasil e está por aqui até hoje. Foram descobertos por Guilherme Araújo, tocando na boate O Beco. Tocaram comigo em Alegria, alegria, No dia que eu vim embora e Soy loco por ti, América. A cançao Tropicália teve arranjos de Júlio Medaglia, Clarice também. Anunciação foi de Sandino Hohagen. O conjunto RC-7, do Roberto Carlos, tocou comigo em Superbacana. A faixa Eles foi arranjada e tocada pelos Mutantes. A produção do disco foi do Manuel Barenbein.

Outro dia revi o produtor do disco, Manuel Barenbein, e fiquei muito feliz. Ele foi ver o meu show Noites do Norte, em São Paulo. Uma figura, o Bareribein: era muito magro naquela época; hoje está gordo. Continua trabalhando com produção de discos. Depois de viver muitos anos na Europa — França e ltália — está de volta ao Brasil. Ele é de uma época em que o produtor tinha muitos poderes. A gravadora o encarregava de "cuidar" daquele disco, e ao artista competia apenas gravar as faixas. Não podia, sequer, ver a mixagem e muito menos a masterização, que chamavam de corte. Nenhum artista acompanhava esse processo. Como aquele negócio do cinema, que os atores não podiam ver o copião, para não atrapalhar.

Lembro-me de que não queria colocar Clarice no disco. Quem impôs a cancão foi o Barenbein. Eu queria gravar Dora, de Caymmi, e chamei o Dori para tocar. Mas não rolou. Nessa época, os produtores eram funcionários das gravadoras, designados por elas para produzir os discos dos artistas por elas contratados. Contamos com músicos excelentes, como o baterista Dirceu, em algumas faixas. Um mùsico maravilhoso, espetacular mesmo, divino, já falecido. O Dirceu, inclusive, foi quem disse aquelas frases na introdução de Tropicália que está no disco.


depoimento de Caetano Veloso a Charles Gavin r Luís Pimentel em TANTAS CANÇÕES (livro da Caixa TODO CAETANO 2002), pagg. 23-25