MÚSICA EM LONDRES, ROLLING STONES, A ILHA DE WIGHT E O MILES DAVIS

texto de Caetano Veloso

Tivemos boas relações com a vida musical de Londres durante a nossa permanência. Íamos ver os shows que pintavam e algumas pessoas que faziam música lá. Poucas chegaram a ter contato conosco. O pessoal do The Incredible String Band, por exemplo, foi a minha casa algumas vezes. Mas eram aqueles ingleses que ficam sem falar (ainda mais naquela época hippie, em que as pessoas ficavam sem falar mesmo). O Gil chegou a ter contato com o pessoal do Traffic, ele saia muito mais do que eu lá. Eu via shows como o dos Rolling Stones, do T.REX, Jimi Hendrix, tudo o que existia por lá naquele momento.

Veio o II Festival da Ilha de Wight, em 1971 (já tínhamos comparecido ao primeiro, quando assistimos a Bob Dylan), onde vi a estreia do Emerson, Lake and Palmer, além do Miles Davis, que foi o único músico de jazz que tocou no festival. Fomos chamados ao palco, eu, Gil e Gal — que foi nos visitar em Londres e viajou para o festival conosco, juntamente com os músicos da Bolha, que tocavam com ela, Arnaldo Brandão, entre eles. Aquela multidão, mais de 600 mil pessoas, e o cara do microfone anunciou:

— Brazilians composers Gilbeeerrto Gil and Caietano Velooooso! Invited to the backstage by Miles Davis!

O fato de termos nos apresentado nos deu um "botão dourado", livre trânsito. A gente ficava naquele "chiqueirinho", assistindo tudo junto ao palco. Na hora da apresentação, ficamos quase todos nus no palco, porque estávamos usando uma roupa coletiva, criação de uma artista plastica francesa. Todo mundo vestia a roupa ao mesmo tempo e ao mesmo tempo tirava. Como alguns estavam nus por baixo...

Saiu inclusive um comentário na revista Rolling Stones, sobre nossa apresentação, que dizia mais ou menos o seguinte: "O que teve de mais interessante foi um grupo de brasileiros, que ninguém sabe de onde saiu, não estavam programados, mas eram pessoas muito interessantes, que apresentaram músicas interessantes e fizeram coisas interessantes. Comparado com o que eles fizeram, tudo o que vem se apresentando até hoje no festival não passa de psychedelic muzak. Foi a primeira nota na imprensa americana ao nosso respeito."

Airto Moreira estava tocando com o Miles Davis e mandou nos chamar. Fiquei olhando lá atrás, no backstage, e não vi o Airto, vi o próprio Miles, encostado naquele corrimão de madeira que leva ao palco. Eu me aproximei dele:


— Excuse-me.


Ele me olhou com aquele olho duro e sussurrou, praticamente sem voz:


— Yes.


— Where is Airto?


Ele indicou a direção, entrei e acabei encontrando o Airto, que me trouxe de volta para junto de Miles Davis e nos apresentou. O Miles então ficou me olhando, bem de perto, olho no olho. Segurei o olhar e ficamos nos encarando. O Airto Moreira ficou tão emocionado com aquilo que ficou pulando e gritando em volta de nós dois, parecendo um ritual indígena. Quando o Gil se aproximou, deparou-se com esta cena: eu olhando para o Miles Davis, que olhava para mim, enquanto o Airto pulava em volta.


depoimento de Caetano Veloso a Charles Gavin r Luís Pimentel em TANTAS CANÇÕES (livro da Caixa TODO CAETANO 2002), pagg. 35-36