TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRSENCIS(1969)

texto de Caetano Veloso

Com arranjos divinos de Rogério Duprat, veio logo depois, tanto do meu disco individual quanto do disco individual do Gil, que são os discos inaugurais do tropicalismo. Quando fizemos Tropicália ou panis et cirsencis, que é um disco meio manifesto e coletivo, estávamos cientes de toda essa efervescência política pos-AI-5 a que me referi anteriormente. Nele tem cancões, como Enquanto seu lobo não vem, que são de comentários sobre essa questão social e que são respostas poéticas ao estado de animo dos brasileiros naquele momento. Convida para as passeatas, identifica-se com os desfiles da Mangueira, fala "vamos por debaixo das ruas" como um apoio a um trabalho clandestino, se fosse preciso, "há uma cordilheira sob o asfalto", por causa de Che Guevara na Cordilheira, coisas assim. "Sob o asfalto da Avenida Presidente Vargas", com esse "Presidente Vargas" sendo repetido várias vezes, porque o presidente Vargas representa o centro da história do Brasil moderno, que resultou em um líder de grande avanço. Até hoje, para o bem ou para o ma], ele ainda é o grande nome da história política do Brasil moderno. A canção gritava o nome dele, gritando pelo Brasil.

Em um de seus arranjos divinos, Rogério Duprat faz uma menção à Internacional Comunista, que a censura nem notou. A rigor, podemos dizer que a censura nunca entendeu nada. Também não sacou todas essas coisas que falei a respeito de Enquanto seu lobo não vem; como a esquerda também não sacou muita coisa. Um ou outro percebeu as mensagens na letra dessa cancão; mas aquela esquerda festiva do nosso ambiente, posso dizer, não sacou coisissima nenhuma.

Também na letra de Lindonéia está caracterizada a violência em que se vivia, através de versos como "cachorros mortos na rua/ policiais vigiando", "Lindonéia desaparecida". Era a poesia da opressão. Tropicália ou panis et cirsencis é um disco eivado dessas cancões. Basta ver: "Bra-zi-il/ Fu-zi-il". Mesmo assim, a esquerda falou mal, como sempre. Não deixou de dizer que era entreguismo.

Está tudo em Tropicália ou panis et cirsencis. Os lindos arranjos do Rogério Duprat, que foi muito orientado por mim. É um filme meu, esse disco. O Gil, que fez coisas divinas nesse trabalho, não ficou tão animado com o resultado. Ele achou que tinham umas coisas desafinadas na orquestra. Mas eu gosto tanto do conceito, da concepção, do filme e da poesia que é esse disco, que não me incomodei nem um pouco com os detalhes técnicos que incomodaram o Gil na época. Tropicália ou panis et cirsencis traz mais um marco: neste disco está a primeira realização do grande grupo Os Mutantes, com a cancão que se destaca do resto do disco, Panis et circenses<(i>, gravada antes de Os Mutantes fazerem o disco deles. Sempre foram maravilhosos, um dos maiores grupos de rock do mundo, sempre achei isto e digo isto no meu livro Verdade Tropical. Hoje, o mundo inteiro reconhece, tanto us músicos quanto os críticos de revistas inglesas e americanas, todos eles dizem que Os Mutantes são importantíssimos.

A meu ver, Panis et circenses na gravação de Os Mutantes, juntamente com Baby, naquele arranjo maravilhoso do Rogério, na interpretação da Gal, bem como Coração materno, também pela solução de arranjo que o Rogério encontrou, são exemplos no disco Tropicália ou panis et cirsencis de peças tropicalistas bem-acabadas, perfeitas, que muito me satisfizeram na hora em que as vi prontas.

Neste disco, estreia também o grande artista Tom Zé, a quem fui buscar em Salvador. Ele não queria de jeito nenhum vir para São Paulo, tinha medo do frio e pavor de deixar a Bahia. Insisti muito, o trouxe de avião comigo. Gravamos músicas dele nesse disco, começou aí a sua carreira e Tom Zé está aí até hoje, atuante, compondo e gravando. Depois de longo silêncio, Tom Zé tornou-se mundialmente conhecido graças ao seu LP Estudando o samba, que "bateu nos ouvidos" do David Byrne na hora certa. Até porque, ele estava quase desistindo de tudo e voltando para Irará, onde tinha projetos de cuidar de um posto de gasolina.

A capa do disco Tropicália ou panis et cirsencis correu o mundo. E, hoje, um clássico internacional. Apareceu com destaque no jornal The New York Times, na revista View, na Mojo. Na época, nem achei que fosse suficientemente moderna. Rogério Duprat mesmo levou o penico que aparece segurando, foi o que deu para se fazer na hora. Foi feita na casa do Olivier Perroir e, infelizmente, não lembro quem foi o fotografo. Acho até que ele devia se apresentar, pois a foto dele tem sido republicada no mundo inteiro.

Acho que no disco Tropicália ou panis et cirsencis só faltou a Bethânia. Ela ia participar, ia gravar a canção Baby, sugerida por ela. Acabou sendo gravada pela Gal Costa, porque Bethânia não foi à gravação. Depois ela explicou, não gostava de participar de obras coletivas, nem de grupos ou movimentos, por ser uma pessoa muito individual. Depois ela gravou Baby, em disco solo.

O André Midani, que sempre foi ligado a bossa nova e havia ficado muito tempo fora do país, retornou exatamente quando acabara de ser lançado o Tropicália ou panis et cirsencis. E declarou, ao ouvi-lo:

O Brasil mudou.


depoimento de Caetano Veloso a Charles Gavin r Luís Pimentel em TANTAS CANÇÕES (livro da Caixa TODO CAETANO 2002), pagg. 28-29