O SOL AINDA BRILHA?

O décimo aniversário do movimento tropicalista e as sombras que ameaçam cair sobre seus criadores

Na capa do LP, as principais personagens musicais do tropicalismo: de pé, Arnaldo, Caetano (com foto de Nara), Rita, Sérgio e Tomzé; sentados, Duprat. Gal e Torquato; no chão, Gil (com foto de Capinam)
Debaixo de um céu de anil/ Encontrareis um gigante/ Santa Cruz, hoje Brasil.
Casemiro de Abreu

E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão.
Caetano Veloso

 

 

De repente, as vozes dos dois poetas cantaram em coro. Como num espelho mágico, ainda que rigorosamente absurdo, elas refletiram o céu de anil debaixo do qual uma infelicidade eterna teimava em mostrar seu rosto descarnado. Amplificada pelos quilowatts cada vez mais potentes dos equipamentos de som, estas duas imagens tão distantes e, no entanto, tão gêmeas, varreram e emocionaram os auditórios dos festivais de músicas e dos programas de televisão. E não estavam sozinhas em sua auriverde juvenilidade; desconfiava-se até que o grito de Gilberto Gil e Caetano Veloso era também a trilha sonora de filmes como “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, ou “Macunaíma’\ de Joaquim Pedro, ou de peças como “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, ou “Roda-Viva”, de Chico Buarque de Holanda, ambas encenadas — ou “tropicalizadas”, como se disse na época — por José Celso Martinez Corrêa. '“Tudo ficou velho diante deles”, constatou maravilhado o artista plástico Hélio Oiticica. “Quem os ataca é reacionário. Quem os ataca só pode ser um liberal bem nutrido.”

Há quanto tempo se produziu nos trópicos este momentoso cataclismo cultural? Há nove, dez anos apenas. Nesse período, o pequeno, atrevido, talentoso e controvertido exército de artistas despencou do céu para o inferno. Passados os dois anos e pouco de euforia e criação, acompanhadas tanto por vaias quanto por aplausos, todos eles — sem exceção — amargaram um exílio compulsório ou voluntário. Como uma tempestade de verão, intensa e relampejante, eles alargaram e semearam o campo que nunca mais seria o mesmo. Depois deles não correu o dilúvio, mas a seca. Hoje estão todos de volta. Continuam, parece, aconchegados sob o céu de anil. E, mais que nunca, dedicam-se ao cultivo das reações fortes. Em defesa de Glauber Rocha, Gilberto Gil e Caetano Veloso, já saíram os editorialistas de O Globo e de O Estado de S. Paulo. Teriam ficado loucos? Nem tanto. Vagamente surpresos, ou talvez assustados, com o fato de terem virado História, como também num cérto período imaginou-se que eles estivessem mortos, os tropicalistas de ontem se mostram mais felizes que nunca. Não foi por outro motivo que Glauber Rocha, ao se encontrar com o repórter Paolo Marconi, de VEJA, à beira da piscina de um hotel de Salvador, toda cercada de palmeiras iluminadas pelo sol da manhã, ostentava uma portentosa camisa de flores verdes, amarelas, azuis e roxas, “para tirar fotografias neste hotèl tão tropical”, conforme esclareceu. “De manhã cedo minha cuca está sempre ótima.”

É verdade que, nos 45 minutos seguintes, em que Glauber quase perdeu a respiração de tanto falar, sem dar oportunidade ao repórter de uma única pergunta, transpareceu também a efervescência de uma cabeça atormentada e extraordinariamente elétrica. “Não estou querendo brincar, tenho uma saúde fraca porque vivo constantemente enervado e tenho úlcera”, explicou, Para ameaçar logo em seguida, a respeito das dificuldades que está enfrentando para financiar seu novo filme, “Idade da Terra”, o primeiro longa-metragem que roda no Brasil nos últimos nove anos: “Mas estou com o corpo fechado e vou fazer o filme, a não ser que me matem e passem em cima de meu cadáver. Sou um dos melhores cineastas do mundo. E sai debaixo que o meu cinema é forte e não tenho que dar satisfações a ninguém”. Glauber Rocha, como de hábito, mostrou-se naquela manhã um conversador generoso e torrencial. E, se falou em dar satisfações, isto é, em não dá-las, sua disposição é extraordinariamente reveladora de sua situação e da dos outros membros do grupo tropicalista que ele, em sua própria opinião e na dos demais liderou. “Nós carregamos uma corcunda”, acrescentaria depois Caetano Veloso. As palavras de Glauber e Caetano, e mais as de Gil e José Celso (veja os depoimentos no link abaixo), reacendem porém a velha chama. De fato, eles foram os últimos heróis de uma geração.

Embora não mais de 3 650 dias se tenham passado desde que as manifestações tropicalistas se materializaram, todo aquele intenso e curto período tornou-se aparentemente tão distante e petrificado como um verbete de enciclopédia. Por motivos ainda não detectados nem mesmo em livros e teses universitárias, já debruçados sobre o significado daqueles anos, uma estranha e invisível passarela ligou os passos de artistas que mal se conheciam. Em 1967, quando estreou “O Rei da Vela”, a peça que Oswald de Andrade (1890-1954) escrevera em 1933, Caetano Veloso estava na platéia. Ele compusera semanas antes sua música “Tropicália”, e sentiu que do palco emànava algo como uma “revelação” — uma impressão tão forte que o levou, tempos depois, a dividir sua obra em “antes” e “depois” de “O Rei da Vela”. José Celso Martinez Corrêa, então no auge de seu prestígio de encenador, tendo a seu crédito o marco do teatro realista no Brasil, com a montagem de “Pequenos Burgueses” em 1963, declarava então que havia assistido a “Terra em Transe”, de Glauber, e sua sensação foi tão forte que não apenas dedicou o espetáculo a Glauber como profetizou: “Tenho certeza de que a nossa geração vai começar a criar algo de novo”.


Sinais, por certo, não faltavam. Foi também nesta época que circulou a história de uma certa Lindonéia, que andava num ônibus Jacarepaguá — Ipanema, usava sabonete Eucalol e tinha um elefante de louça em cima da televisão. A figura de Lindonéia, pintada num quadro bisotê por Rubens Gerchman, foi descrita oralmente a Caetano Veloso por Nara Leão. Ele intuiu logo todo um desfecho de crônica policial: a moça tinha 19 anos e morrera instantanemente sob as rodas de um veículo. A “revelação”, outra vez, produzira seus frutos. Incluído no LP “Tropicália ou Panis et Circensis”, o bolero “Lindonéia”, na voz de Nara Leão, narrava os versos esplêndidos que pareciam saídos do quadro: “No avesso do espelho/Mas desaparecida/Ela aparece na fotografia/Do outro lado da vida”. Positivamente, havia algo no ar, além de palmeiras ao vento. Os espíritos mais sensíveis, ou mesmo mais críticos, desconfiaram que desde 1922 não se via no país algo remotamente parecido a um “movimento” e, além do mais, “modernista”. O LP “Tropicália”, feito em forma de manifesto, coletivamente, misturando o lastimóso “Coração Materno”, velho clássico de Vicente Celestino, com a irônica “Baby”, de Caetano, em arranjos de requintes inéditos ainda hoje, confirmou essa sensação.

Todos os que participaram do tropicalismo, e também os que o estudaram, escrevendo artigos em jornais, chegaram então à melindrosa questão de saber por que tudo aquilo estava acontecendo. Afinal, os anos de 1967 e 1968 foram marcados por notícias tão disparatadas entre si como as manifestações estudantis, com a famosa “passeata dos 100 000” no Rio de Janeiro e as agitações de maio de 1968 na França, e a presença do pensador Herbert Marcuse como best-seller até no Brasil. Naquele tempo, o robusto cientista-adivinho Herman Kahn deu-se ao trabalho de aterrar no Rio de Janeiro para prever que no ano 2 000 o Brasil continuaria sendo o país do futuro. O cruzeiro novo, que passou a circular em fevereiro de 1967, estabelecia o valor das mercadorias: 15 deles compravam o clássico dos Beatles “Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, 0,95 valia 1 quilo de arroz, 84 eram o salário mínimo, 0,30 o litro de gasolina e 6 400 o preço de um Volkswagen do ano. Embora a população do centro de São Paulo perseguisse com vaias e pedradas os rapazes cabeludos e moças de minissaias que ousassem transitar pelas imediações da rua 7 de Abril, os jornais traziam inequívocas notícias de que o brasileiro estava evoluindo. Ao som de “Te Amo, te Amo”, com Roberto Carlos, “Sá Marina”, com Wilson Simonal, e “Segura este Samba, Ogunhê”, com Oswaldo Nunes, campeões de vendagem em 1968, todos ficaram informados que a altura média dos brasileiros aumentara nos últimos dez anos de 1,66 metro para 1,70 (de São Paulo para o sul) e de 1,61 para 1,65 (de Minas Gerais para o norte), o que tornava os nativos do país idênticos em porte a um inglês do século XI. Com muito otimismo, porém, a Organização Mundial da Saúde, responsável pela medição, assegurava que na década seguinte os brasileiros chegariam ao ápice: 1,80 metro, ou seja, tanto quanto um sueco em 1967. Talvez nenhum desses dados explique o nascimento do tropicalismo, mas alguns observadores do movimento pensam que eles não devem ser descartados. O compositor Antônio José Santana, o “Tomzé”, tropicalista da primeira hora, com sua música “Parque Industrial” imortalizada no LP “Tropicália”, gravou desde então cinco LPs individuais e sobrevive hoje graças à classe universitária, “com a qual travo verdadeiras lutas num show”. Esses dez anos não bastaram para que ele, hoje com 40, ainda não deixe de sentir uma certa “estranheza” frente ao tropicalismo, movimento que acabou abraçando depois que recebeu de Caetano Veloso, ainda na Bahia, um conselho: “Pegue um avião e vá para São Paulo. Você aqui se aborrece, lá vai se aborrecer também mas pelo menos acontece alguma coisa”. Para Tomzé, a explosão de 1967/1968 tem tantas explicações que ele, pessoalmente, sente-se inclinado a considerar que a grande responsável por ela foi o avião. Segundo a visão aérea de Tomzé, as finíssimas colinas do Morumbi, em São Paulo, estão bem ao lado dos tristes barracos da favela Ordem e Progresso — embora quem contemple os dois logradouros de dentro de um carro imagine que elas estão a quilômetros uma da outra. “O Morumbi e a favela são gatos do mesmo saco”, acrescenta. “Exatamente como Vicente Celestino e João Gilberto, que também parecem muito distantes um do outro, são parentes consanguíneos, de primeiro grau.” Isso desvendaria o fato de que tanto o cantor de “O Ébrio” quanto o de “Chega de Saudade” conviveram harmoniosamente dentro do tropicalismo, desde que vistos assim do alto. (Tomzé acredita também que a ponte Rio—Niterói se deve à bossa nova, com as plataformas flutuantes da primeira traduzindo ao nível da engenharia os materiais sonoros com que lidava a segunda. Mas este é um outro movimento artístico.)

Outro pilar do tropicalismo, o maestro Rogério Duprat, relembrando hoje o clima em que orquestrou e arranjou as faixas do LP “Tropicália”, esbarra numa questão de ordem prática: “Eu tinha abandonado o Teatro Municipal, que era o meu emprego, e precisava meter a cara”. Aos 45 anos, dono de um estúdio de som em São Paulo e morando em Cotia, longe da cidade, onde os sons que mais aprecia “são mesmo os dos passarinhos”, o maestro cultiva um prudente distanciamento de quase todos os tipos de música, especialmente a erudita. “Eu não sinto mais vontade de ser arranjador para resolver problemas de quem quer que seja, de nenhum cantor”, diz ele. Uma atitude, enfim, coerente com a carreira do maestro, que ainda em 1968 dizia: “Não queremos mais a tal Arte. Todo mundo cria, o que importa é o happening. E, se não quiserem chamar isso de música, então que chamem a polícia”. Duprat lembra também, e aparentemente sem ressentimento ou raiva, que depois de 1969 “nós começamos a ser olhados como leprosos pelos nossos próprios colegas — locutores e gravadoras —, porque o sistema nos tinha rejeitado”. Um exemplo de seu atual trabalho, quando não está cuidando do estúdio: “Uns arranjos para As Frenéticas. É divertidíssimo”.

A “rejeição” do sistema aos tropicalistas, deflagrada no dia 13 de dezembro de 1968, com a edição do AI-5, é um dos pontos cruciais desta questão. Na verdade, desde a década de 50, quando a Cacex taxou violentamente as importações de papel e com isso desferiu um golpe mortal no concretismo poético, que esbanjava extensas porções de folhas em branco, nenhum movimento artístico parecia ter sua existência ameaçada por um decreto do governo. “Terra em Transe”, a reconhecida célula-máter do que então se fazia, acabou passando após alguns percalços com a Censura e surgiu com o poder de dividir asperamente a crítica. O filme mostrava um país imaginário, Eldorado, filmado nas ruínas do outrora elegante Parque Lage, no Rio, num enredo de corrupção, violência e alegoria (entre outras cenas marcantes, havia uma Primeira Missa, na qual um índio se encontra com um nobre fantasiado como quem vai a um baile de carnaval). Nas portas e região do Cine Paissandu, no Flamengo, então o centro da intelligentsia cinematográfica da época, várias pessoas asseguraram que haviam acabado de presenciar o mais alto momento da cultura brasileira. Ao mesmo tempo, a 400 quilômetros dali, no auditório da TV Record, em São Paulo, o jovem Caetano Veloso acompanhado de um conjunto de rock — os Beat Boys — entoava a sua “Alegria, Alegria”. Tanto quanto “Domingo no Parque”, que Gilberto Gil cantou acompanhado de outro conjunto de rock, Os Mutantes, a música lançou a pedra fundamental do tropicalismo sonoro, para a qual seus autores logo procuraram aliciar correligionários. Mas a novidade dos arranjos e das letras parecia desnortear seus próprios companheiros de profissão. O Quarteto Novo, convidado para tocar “Domingo no Parque”, recusou, pois eram músicos de algo mais sério, o jazz. Numa reunião na casa de Sérgio Ricardo, convocada por Gil para debater o assunto, a cacofonia tornou-se total. “Macalé era contra, Edu Lobo não falava comigo, Elis Regina dizia que eu estava apodrecendo, Nelson Motta achava nossos gritos ‘exagerados’ e Roberto Menescal dizia ser absurdo o barulho ‘daqueles meninos’ (Os Mutantes)”, relembra Gil. À saída de um show, ele chegou a ouvir de Sérgio Ricardo: “Não se incomode, as coisas vão melhorar”.


Se dependesse da maioria dos músicos, realmente, o tropicalismo talvez nem tivesse nascido. Mas foi do outro lado da glória, isto é, no bairro paulistano de classe média da Vila Mariana, em São Paulo, que veio o socorro. Levados por Rogério Duprat, os jovens Mutantes, roqueiros por gosto e convicção, concordaram em conhecer' Gilberto Gil. “Eu fui até o estúdio pensando que ia ouvir música brasileira e achar uma porcaria”, conta Arnaldo Dias Batista, um dos Mutantes. “Gil tocou ‘Domingo no Parque’ e eu gostei muito de uma décima que ele deu na música, uma coisa que despertou meu coração.” Aos 29 anos, pai de um menino de 6 meses, Arnaldo confessa que passou a acompanhar os baianos com alguma má vontade: “ ‘Alegria, Alegria’, eu achava careta. Hoje é gostosa de lembrar porque traz de volta a época, a nostalgia”. Mas admite que sua ligação com Gil, especialmente, escapa à compreensão da maioria dos mortais: “O universo dos músicos é muito difícil da gente explicar”. Ainda assim, arrisca: “Eu olhei o dedo do Gil e achei que ele era um cara legal”.

Rita Lee, atualmente com 29 anos e mãe de um menino de 1, estava presente a esse encontro e teve uma sensação parecida. “A música brasileira era pesada, radical, encarava a guitarra como sujeira”, recorda ela. “Mas tocar com Gil me abriu a cabeça. O tropicalismo era uma brincadeira maravilhosa, um grande circo. E eu não entendia nada de nada. Só depois fui saber que era um movimento que passou.” Foram esses dois mutantes, e mais o irmão de Arnaldo, Sérgio, hoje na Itália, que enfim se dispuseram a acompanhar Caetano na música que ele fizera de parceria com Gil, “Divino Maravilhoso”, no Tuca, em 1968, em São Paulo. Foi uma noite memorável em que a platéia, irada, parecia mais disposta a ouvir canções de protesto. Debaixo da saraivada de vaias, pedaços de paus e tomates jogados ao palco, um Caetano Veloso quase inaudível berrou o que conseguiu no meio da apresentação: “Mas é isto que é a juventude que diz quer tomar o poder? Vocês não estão entendendo nada. Nada. Se vocês forem em política o que são em estética..

Gravado em disco, o desabafo de Caetano se transformou logo numa questão de ordem, numa espécie de marco — algo funesto, porém. “Naquela noite”, lembra Arnaldo, “eu tinha brigado com a Rita porque arrumei uma namoradinha e estávamos muito desgostosos. “Além disso, colocara-se de costas para a platéia — que se sentiu insultada — apenas para fugir dos objetos que eram atirados ao palco. Terminado o show e o discurso, foram todos para a casa de Caetano, um imenso apartamento na avenida São Luís, no centro de São Paulo, e ficaram jogando pingue-pongue. “Nós tocamos com os baianos até o dia em que a gente foi ao apartamento deles e nos disseram que tinham sido presos.” Alguma — talvez muita — coisa já não ia bem. “Eles estavam caminhando para um lado de presidência da República e de polícia quando eu estava interessado em ter um amplificador melhor”, diz Arnaldo. “Politicamente, não achava o tropicalismo muito legal. Era estudante demais para mim. Eu não concordava com as idéias deles. Acho que tinha um pouco de comunismo.” Mas pondera: “Não sei. Talvez eu esteja redondamente enganado”. Para Rita Lee, que acabou de fazer uma excursão pelo país, levando o show “Refestança”, com Gil, a separação foi dolorosa: “Nós ficamos assim meio sem pai nem mãe”.


Os jovens Mutantes não poderiam ajudar muito já que eles mesmos viviam uma imagem inteiramente falsa que acabou por empurrá-los para crises existenciais e à posterior dissolução do conjunto. “Diziam que a gente fazia sexo em grupo e coisas do gênero, e aos poucos nós fomos obrigados a assumir esse tipo de comportamento”, diz Arnaldo. Só agora, passados dez anos, segundo ele, é que começam a se recuperar disso e “a transar numa boa”.

Junto a seus mentores mais velhos a sensação não era muito diferente. Embora tivessem ganhado muito dinheiro em poucos meses, a ponto de circularem pelas ruas de São Paulo em vistosos Mercedes-Benz com chofer, Gil e Caetano já estavam cuidando do enterro do tropicalismo, especialmente no programa “Divino Maravilhoso”, que faziam todas as segundas-feiras na TV Tupi de São Paulo. “Nas vésperas do Natal de 1968, eu cantei aquela música linda, ‘Anoiteceu’, do Assis Valente, com um revólver na mão”, diz Caetano. Segundo ele, “Assis Valente era mesmo um suicida” e sua intenção era fazer um número violento, “de total desesperança, apontando o revólver para minha cabeça”. Àquela altura, os telespectadores do interior de São Paulo já haviam dado mostras, por cartas e outros avisos, de seu desagrado com o programa. O gesto suicida de Caetano não chegou a ser visto por eles: as câmaras eram orientadas para evitar a transmissão dessa imagem. “Quatro dias depois, nós fomos presos”, finaliza Caetano.

O vácuo que se seguiu foi profusamente lamentado. Caetano e Gil viajaram para Londres. Glauber, depois de filmar “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, partiu para uma ausência de seis anos e para rodar meia dúzia de filmes no México, Europa e África, nenhum deles exibido no Brasil. José Celso e o Teatro Oficina mantiveram uma linha de grandes espetáculos, como “Galileu Galilei”, de Brecht, embora já com uma orientação muito distinta: “O tropicalismo me repugna”, afirmava ele em 1969. “Aquilo tudo foi consumido com tal rapidez que perdeu o sentido.” Em 1972, José Celso encenou “Gracias, Señor”, que durava quatro horas e no qual ator e público se confundiam: “Fomos punidos pelos bancos e também pela Censura”, diz ele. Em 1974, finalmente, José Celso partiu, junto com outros dezessete reminiscentes do Oficina, rumo a Portugal, onde rodou um filme “O Parto”, fazendo uma analogia entre a gestação de uma criança e o movimento de 25 de abril. Fez um filme em Moçambique, “25”, exibido no Festival de Cannes, e dos principais participantes do tropicalismo é o único que permanece fora do país.

Aliviada a cena brasileira de suas figuras mais controvertidas e expressivas, sobraram tempo e distanciamento para quem quisesse estudar o que acontecera nos dois anos anteriores. Por que, por exemplo, logo depois de “O Rei da Vela”, as figuras mais conhecidas de Ipanema passaram a usar terno de tropical branco de lapelas largas, charutos e chapéu dé palhinha? Qual era o sentido do concurso Miss Banana Real de 1968, realizado no Rio? Por que as calças vincadas, os cabelos glostorados, os sapatos de duas cores, o culto às palmeiras, cocos e abacaxis? E mais: que fascínio novo e misterioso levava as mulheres a preferirem as cores turquesa, laranja, maravilha e os vestidos rodados, com anáguas? O poeta Augusto de Campos, apreciador do trabalho dos baianos desde antes do tropicalismo, lembrou num artigo que o trabalho de Gil e Caetano foi além do fato musical. “A roupa tem uma linguagem, é um sistema de signos e tem, ou pode ter, uma mensagem crítica.” Segundo sustentou, Caetano quis, coerentemente com a letra de sua música, despertar ao vivo “a consciência da sociedade repressiva que nos submete”. Da seguinte maneira: “Desafiando os tabus e os preconceitos do público com as suas roupas chacrinizantes”. Abelardo Barbosa, o “Chacrinha”, era considerado, naquela época, a expressão direta, em estado bruto, da verdadeira sensibilidade estética do povo brasileiro — seja lá isso o que for. Reforçava essa idéia o fato de que Chacrinha, sempre exibindo um álbum de recortes, provava que nos vinte anos anteriores já se fantasiava de índio e de noiva, sempre sob os apupos da “imprensa intelectualizada” que o chamava de “débil mental, maluco e de grosso”. Mas desafiava: “Hoje têm que reconhecer o meu valor. Eu sou o rei do tropicalismo”. Segundo ainda Augusto de Campos, o movimento de 1967 e 1968 estava, musicalmente, muito à frente do que se fazia no país, pois levava em conta tudo o que acontecera na primeira metade do século, de Stravinsky a Stockhausen. “Em termos de linguagem artística, o tropicalismo é essencialmente um movimento poético musical”, ressalta ele, e muifo marcado pela extraordinária modéstia cultural de seus criadores.

“Caetano diz que não lê, que não fala de literatura, mas muitas vezes pude testemunhar sua hipersensibilidade, na inteligência e na rapidez com que era capaz de trocar idéias sobre um livro de poemas complexo, como os de e. e. cummings, por exemplo”, explica ele. A seu modo, outros interessados que se detiveram no tropicalismo veriam também, nessa alquimia de intuição e instinto, a mola que afinal estaria impulsionando tudo aquilo.


A mola seria o contraste entre o arcaico e o novo, e ela abastece os dois principais estudos surgidos até agora sobre o assunto, “De Olho na Fresta”, livro de Gilberto Vasconcelos, e “Notes sur la Culture et la Politique au Brésil”, de Roberto Schwarz, publicado na revista Les Temps Modernes e não editado no Brasil. A antropofagia do autor de “O Rei da Vela” — posta em circulação por José Celso e pelo trabalho de divulgação feito por Augusto de Campos e seu irmão Haroldo — também estaria por trás de tudo, assim como o livro “Visão do Paraíso”, de Sérgio Buarque de Holanda, onde o homem tropical é mostrado em permanente êxtase diante da natureza que criou. Segundo o crítico Gilberto Vasconcelos, o movimento tropicalista foi tão fundo que seus autores o enterraram em vão: “Não foi moda nem se tornou peça de museu”. Segundo ele, o tropicalismo pôs fim “ao mito populista” da redenção popular que perseguiu a canção do protesto, onde se professava uma fé cega “no dia de amanhã” e os verbos estavam sempre conjugados no tempo futuro. “A tropicália talvez se inscreva como a última importante vanguarda (em termos de grupo) da trajetória de nossa cultura após a experiência modernista de 22”, sustenta ele. Estranhamente, porém, ela morreu “no ato mesmo de sua proferição, tal como as inúmeras vanguardas do nosso tempo”. Ficou gravada, assim, “a absurdidade do nosso país”.

A mesrtia absurdidade aparece num tom diferente no texto de Schwarz, escrito em Paris, onde o autor morou nos últimos nove anos. “Talvez se possa dizer que o fundamental do tropicalismo consiste em submeter os anacronismos à luz branca do ultramoderno, apresentando o resultado como uma alegoria do Brasil”, propôs ele. O fundo de imagens tradicionais é freqüentemente representado a partir de seus decalques em folhetos de rádio, nas operetas, nos cassinos e congêneres, o que assegura um efeito: “É como se observássemos um gentleman que faz valer sua superioridade moral pelo rigor com que se veste, sendo que ninguém mais usa hoje aquele chapéu”. O tropicalismo utilizaria a conjugação bizarra do arcaico e do moderno para obter seu efeito artístico e crítico. “Diante de uma imagem tropicalista (indígenas miseráveis filmados ironicamente em cores, uma festa elegante mas no fundo provinciana), o espectador em choque deve expressar a linguagem segundo a moda que convém: ele dirá que o Brasil é o limite, é o fim dos fins, um buraco* que o Brasil é demente.” Em suma, é o mesmo que dizér: “O nível internacional da técnica é o parâmetro aceito da infelicidade nacional; nós, que somos atualizados, articulados ao circuito do capital, reconhecemos, após o fracasso da tentativa de moderniza- 8 ção nacional feita acima, que o absurdo é a alma do país e a nossa própria”.

Restaria esmiuçar ainda as implicações filosóficas do tropicalismo, e a esta tarefa vem se dedicando desde 1974 o professor Celso Fernando Favaretto, do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Ele afirma, na fese que está preparando para mestrado na área de Estética, que a crítica feita pelo tropicalismo, inclusive quando diz respeito à problemática social, nunca é diretamente social ou política, mas feita em termos artísticos: “A problemática do tropicalismo é de linguagem acima de tudo”. Segundo Favaretto, o tropicalismo é carnavalesco e se define, como estilo, pelo entrecruzamento de várias linguagens. Em nenhum momento se fala do Brasil em termos nacionalistas, nem como um todo, mas fragmentariamente. “As músicas dificilmente valem por si só, pois dão sempre a impressão de ser versões de outras tantas coisas acontecidas. É a síntese-relâmpago que se dá pela simples exposição.” Enfim, ele considera ingenuidade esperar que os tropicalistas musicais fizessem séria profissão de fé política. “As falas de Caetano e Gil podem ser equivocadas, desimportantes, divertidas para eles”, observa. “Não se pode transformá-las em teorias e sim buscar o que está na produção, na linguagem.”

Fora dessas peregrinações mais eruditas, porém, o que se dá com os tropicalistas é bem mais rasteiro. Desde que Caetano e Gil voltaram de Londres, em 1972, sendo recebidos como novos guias e alçados, independente de sua vontade, ao altar dos profetas, o público tem preferido dar mais atenção ao que eles dizem do que ao que eles fazem. O mesmo fenômeno se passou com Glauber Rocha, que voltou catorze meses atrás, e neste período não conseguiu mais que filmar um curta-metragem, largamente elogiado, sobre a morte do pintor Di Cavalcanti. Gil e Caetano fizeram shows e lançaram quatro novos LPs, cada um, mas Glauber não teve estas facilidades para se expressar: impossibilitado de fazer filmes, deu uma longa série de entrevistas e escreveu artigos extraordinariamente ambíguos, nos quais, por motivos insondáveis, trocava a letra “i” pelo “y” e “Brasil” passou a ser grafado com “z”. O afastamento do cinema deixou-o compreensivelmente irritado: “Recebi 220 000 cruzeiros para fazer ‘Di Cavalcanti’, fiquei com 80 000 para viver esse tempo todo. Eu tenho uma renda baixíssima. Ê justo que um diretor da minha categoria fique mais de um ano parado, eu que poèso fazer dois longas-metragens por ano melhor do que qualquer pessoa ou no nível dos melhores?”

A resposta talvez esteja no próximo filme de Glauber, “Idade da Terra”, que terá um grande elenco — Norma Bengell, Tarcísio Meira, Jece Valadão, Ana Maria Magalhães, Geraldo dei Rey — mas cuja produção, marcada para dezembro, está comprometida com dificuldades de orçamento que provocam uma ira ainda maior; quando mencionadas na presença do autor. “Há uma covardia, um medo da Censura, um medo de arriscar dinheiro, um medo dei criar”, desabafa ele. E, também ao contrário de Caetano e Gil, aos quais defende, Glauber não tem deixado de externar suas opiniões políticas que hoje desagradam francamente a boa parte dos que dez anos atrás se deslumbravam com “Terra em Transe”. Com oito livros na gaveta e uma “História do Cinema” de 1 200 páginas recusada por Ênio Silveira, o editor que em 1963 lançou o seu na época polêmico “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, Glauber há um ano despiu as roupas de profeta do tropicalismo para vestir as de seu mártir. Ele vem sendo atacado constantemente, pela imprensa ou oralmente; é acusado de ter recebido dinheiro do Ministério da Educação para filmar as passeatas estudantis e encaminhar o material à polícia, acusação que ele classifica como “infamante e caluniosa”; pesam suspeitas sob sua sanidade mental pois ele se imagina perseguido e acredita que sua irmã, a atriz Anecy Rocha, que morreu ao cair num poço de elevador, foi assassinada. Mais que tudo isso, porém, discute-se em termos azedos suas incursões pelo terreno da avaliação política do atual governo. Segundo Glauber, o presidente Ernesto Geisel deveria continuar no posto para continuar a obra revolucionária. Estaria qualificado para tal missão inclusive do ponto de vista “signológico-imagético”: ele se parece com John Ford, o grande cineasta americano de “No Tempo das Diligências” e “Depois do Vendaval”, e com Humberto Mauro, o clássico diretor brasileiro de “Ganga Bruta”. Completando sua apreciação, Glauber afirma: “Geisel é mais importante que De Gaulle, Mao, Kennedy, Lincoln. Ê o maior estadista contemporâneo. Seus discursos são obras-primas e seu conceito de neocapitalismo e da democracia relativa é uma soma política original no mundo”. O próprio Glauber, enfim, ao cumprir seu papel específico de cineasta, atribui-se “quatro estrelas como cineasta e artista”.


Sem dúvida são as reações provocadas por essas palavras, e não pelas obras, que colocaram todas as idéias fora do lugar. O espírito de 1967, e 1968, quando se tornou imperioso tostar-se sob um sol de céu de anil, incorporou-se a um grupo de obras numericamente inexpressivas mas qualitativamente tão fortes que as marcas de sua passagem não puderam ser apagadas. Curiosamente, o correr da década derrubou também de sua trincheira, da qual falava com a autoridade de maior audiência do Brasil, o programa de Chacrinha. Seu nome hoje raramente aparece naquela “imprensa intelectualizada” que antes do tropicalismo horrorizava- se com o que lá era mostrado. Aos 60 anos, o criador da “Buzina do Chacrinha” transmite todos os sábados seu repertório com a mesma disposição do tempo em que era objeto de extensas análises dos comunicadores brasileiros. “Eu ensinei (o empresário) Guilherme Araújo a fantasiar Caetano Veloso de bananeiro”, diz ele. “O tropicalismo é uma invenção minha — alegre, festiva, louca, e o meu programa é assim.” Num de seus programas recentes ele premiou uma caloura que tentou cantar “Prisioneira do Amor” com o Troféu Abacaxi e ofereceu-lhe uma passagem de ônibus para o Ceará; pediu aos telespectadores que respondam se são a favor ou contra o homem usar peruca; serviu de mediador entre os sete jurados que discutiam os méritos de uma canção em que o calouro diz que um boi marcou encontro com uma vaca e não foi; apresentou o colunista Ibrahim Sued que, ao som de buzinadas, ia catalogando as maiores cafonices, anunciando “cafonice número 1” até “cafonice número 10”. Suas dezesseis chacretes, vestindo maiôs mais discretos que dez anos atrás, atendem pelos nomes de Índia Bartira, Maria Pé de Ouro. Um de seus convidados ilustres, Raul Seixas, de boina verde e óculos escuros, fantasiado de xerife, dá tiros de espoleta enquanto grita “O Dia em que a Terra Parou”. Ce n’est pas possible!, exclama Chacrinha a propósito de nada. E não esquece de quem o vê: “Você que está em casa, de penhoar verde, boina amarela, aquele beijo na testa!” Há um ar de resignada aceitação de tudo aquilo na sua voz: “Caetano e Gil? Continuam os mesmos bons cantores. Não usam mais bananas mas vestem outras fantasias. E só não vêm ao meu programa porque ficaram caros demais”. As Frenéticas acabam de cantar “A Felicidade Bate à Sua Porta” enquanto Chacrinha conclui: “Não vêm ao meu programa mas o tropicalismo não acaba. É o Brasil”.


[fonte: VEJA, 23 de novembro de 1977, no481]