O TROPICALISMO é NOSSO, VIU?

Na paisagem tropical da terra que “tem palmeiras onde canta o sabiá” (versinho obrigatório para todo tropicalista que se preze), eles encontraram a motivação de seu movimento: Oswald de Andrade e José Celso Martinez Corrêa (O Rei de Vela), Chico Buarque de Hollanda (Roda Viva), Hugo Bidê (Banda de Ipanema) – acima; os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil – ao centro; Jaguar (Chopnics), Paulo Autran (Terra em Transe), Chacrinha e Rita Lee (do conjunto Os Mutantes) – embaixo. Cada um dêles encarna o tropicalismo à sua moda.

Três anos atrás, quando Roberto Carlos fêz o Brasil desejar que tudo mais fôsse para o inferno, ninguém o levou muito a sério.

Mas era evidente que um ciclo cultural se estava fechando: o teatro político. Depois de contar Zumbi, parava de contar dinheiro; o cinema nacional não cabia mais à sombra da Palma de Ouro do Pagador de Promessas; a chamada música popular brasileira, em desespêro, organizou-se numa frente ampla contra a Jovem Guarda.

— Antes de mais nada, devemos defender o que é nosso. Isso que estão fazendo não é música brasileira. É uma onda que não vai durar muito. Temos certeza de que o samba, o nosso ritmo mais autêntico, vai voltar na voz do povo!

Isto foi dito três anos atrás, mas pode ser ouvido ainda hoje. Apenas não se trata mais da disputa da bossa-nova com o ié-ié-ié: agora não há mais a frente ampla, há o CCC — o Comando de Caça a Caetano. Agora não há mais a Jovem Guarda, há o tropicalismo.

Por trás dêsse rótulo demasiado rígido para um movimento que se recria a cada instante, houve todo um período de amadurecimento, com a fusão de várias componentes. Umas mais próximas, outras mais distantes. Só o tempo poderá estabelecer o grau de participação delas na formação do tropicalismo. Outros "'ismos"

Quando Roberto Carlos mostrou que viera para ficar, percebeu-se que os Beatles eram muito mais do que um grupo de jovens inglêses com uma grande antipatia pelos barbeiros. As coisas passaram a acontecer com tal rapidez, que mesmo o comodismo petrificado de certos ambientes culturais brasileiros começou a ser lentamente abalado.

No Brasil foram os cineastas e pintores os primeiros a assimilarem os novos rumos artísticos que eclodiam ao mesmo tempo pelo mundo todo. As exposições Opinião, no Rio, e Propostas 66, em São Paulo, vieram simplesmente confirmar a impressão deixada pela Bienal de 1965. Ligando-se à vanguarda mundial, o artista brasileiro valia-se de tôda a liberdade oferecida pelas colagens, montagens, equipamentos sonoros e luminosos. Êstes eram os instrumentos mais adequados para fazer o levantamento da cultura moderna, uma cultura em que o homem se via cercado por manchetes de jornais, anúncios de televisão, carcaças de automóveis, o branco mais branco. Afinal, o que era aquilo tudo? Era algo de nôvo? Sim e não.

Há quase meio século, o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo já procuravam entender o universo da máquina à luz das novas interpretações reveladas pelos estudos sociais e pela psicanalise. Destas sementes plantadas na Itália, na Alemanha, na França, brotariam frutos híbridos no Nôvo Mundo. No Brasil também.

Pela dificuldade de um contato mais direto com os seus resultados, a Semana de Arte Moderna de 1922 tornou-se apenas um vago item no currículo dos colégios. Para o estudante médio ela parecia ter sido uma série de banquetes agitados, onde se celebrava a desdita do Bispo Sardinha — devorado pelos indios em 1554 — e de onde todo mundo saía falando que nem e milhor. Muitos atribuíam a organização desta espécie de festival a "dois irmãos" — Mário e Oswald de Andrade — e as novas gerações nunca entenderam por que se deveriam interessar por tal movimento.

— Semana de Arte Moderna não é aquêle negócio em que andou metido o Guilherme de Almeida? Deve ser um papo superfurado!...


A cultura do trópico

Isto foi válido até que, em 1967, o Teatro Oficina levou à cena O Rei da Vela de Oswald de Andrade, com direção de José Celso Martinez Corrêa. Daí em diante, uma porção de gente passaria a entender muita coisa; outros a não entender mais nada. Primeiro, ficava-se sabendo que, apesar do sobrenome, não havia qualquer parentesco entre Oswald e Mário de Andrade. Segundo, descobria-se que uma peça escrita em 1933 podia inquietar, graças à encenação de José Celso mais que todo teatro "engajado" mais recente. O Rei da Vela é urna crítica cáustica da estrutura econômica, da vida política, dos costumes e da mentalidade dominante em algumas camadas da sociedade brasileira dos 30. Todo o material teatral utilizado por Oswald é colhido em nosso modo de vida, sendo reelaborado com uma insolência tôda particular. José Celsa, com imagens vivas, levava êsse espirito até os seus limites: circo, revista da Praça Tiradentes, programa do Chacrinha, chanchada da Atlântida, o espetáculo tinha de tudo. Tratava-se de uma tentativa de captar crìticamente o gôsto das grandes massas brasileiras e, com êle, o verdadeiro espírito da cultura criada no trópico.

Na platéia, um espectador particularmente deslumbrado: Caetano Veloso, que, uma semana antes, havia composto Tropicália

Nesta música, como no espetáculo dirigido por José Celso, havia um ponto em comum: a nova realidade brasileira jogada em contraponto com os valôres tradicionais e consagrados do gôsto popular. Caetano diria depois que dividia sua obra em antes e depois de ter visto O Rei da Vela. José Celso, por sua vez, encantou-se com o intercârnbio de contribuições que começava a acontecer.

— Veja você: fui violentamente influenciado pelo filme Terra em Transe, de Gláuber Rocha. Agora Caetano se diz influenciado pelo meu espetáculo. Tenho certeza de que nossa geração vai começar a criar algo de nôvo.

Terra em Transe, embora feito em 1966, ainda hoje divide a crítica e o público. O filme trata da política violenta, corrupta e contraditória de um país latino-americano imaginário, Eldorado, onde vigora uma mistura de fascismo místico, populismo barato e romantismo revolucionário. Gláuber Rocha não parou para se perguntar o que era ou não era de bom gôsto. Entre uma usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida possível — fica-se com os dois. Assim é no filme: na fundação de Eldorado, na primeira missa, um índio defronta-se com um nobre — vivido por Clóvis Bornay — fantasiado como quem vai ao baile do Municipal; um interrompe seu discurso para cair num samba rasgado ao som de uma banda de subúrbio. Aplicava-se, enfim, a fórmula descoberta por Oswald de Andrade em 1924 — ver com os olhos livres.

Se O Rei da Vela abriu para Caetano Veloso uma nova visão das possibilidades da arte, para Gilberto Gil houve outra fonte de confirmação das necessidades de um nôvo tratamento a ser dado às mensagens artísticas. E, novamente, seria uma montagem teatral que apresentaria notáveis pontos de contato e de refôrço às experiências musicais do "grupo baiano". Por indicação de um amigo, Gil fôra certo dia a um teatro adaptado que funcionava numa boate subterrânea da Rua Augusta. O espetáculo era A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, sob a direção de Líbero Rípoli Filho. Gil, que já conhecia a peça, estranhou o entusiasmo com que o amigo a recomendara. A montagem, porém, deixava tudo bem claro, pois Libero valia-se do texto como um mero pretexto para seus achados histriônicos. Cortava pedaços, intercalava seqüências inteiras de comerciais de televisão e, ao final, trancava ás portas do teatro para um debate. Então, sozinho, representava a peça tôda de nôvo, explicando cada detalhe. Gilberto Gil ficou tão surprêso, que só teve uma pergunta:

— Como é mesmo o nome da peça? — A Cantora Careca, do autor romeno Eugène Ionesco.
— Que nada! Só se fôr A Cantora Careca Contra os Flintstones!


Como vai, vai bem?

Outra referência que não pode faltar tôda vez que se fala de tropicalismo é Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Enquanto os animadores de programas de auditório são sempre bem comportados, vestem-se com aprumo e procuram disciplinar suas apresentações, Chacrinha faz exatamente o contrário: é malcriado, chama o auditório de "macacada" e, não raro, manda-o "para as profundas do inferno". Veste-se com fantasias espalhafatosas, distribui legumes, faz de seu programa uma desconcertante seqüência de surpresas. O povo o adora. E os jovens artistas tropicalistas o tomam como a expressão direta, em estado bruto, da verdadeira sensibilidade estética do povo brasileiro.

Antes do início de um de seus programas é fácil encontrar Chacrinha às voltas com calouros desesperados, politicos do interior e obscuros conjuntos de ié-ié-ié que aguardam uma oportunidade. Uma multidão de secretários cruza o palco a todo instante. Ao contrário do que se pensa, seus programas são sempre muito bem organizados,. com todos os números devidamente cronometrados, sendo deixada apenas uma certa margem de tempo para as improvisações. Chico Buarque de Hollanda, no comêço de sua carreira, só não cantou na Discoteca do Chacrinha porque Pedro Pedreiro era demasiado longo.

— Não dá pra cortar uns esperando, esperando?

Não dava, e Chico deixou de se antecipar a Caetano e Gil.

Quando Chacrinha fala de tropicalismo, faz questão de mostrar seu álbum de recortes.

— Veja aí: êsse negócio de tropicalismo é fofoca. Sou tropicalista há mais de vinte anos. Desde 1946. Desde o rádio. Veja esta fotografia, eu ainda usava bigode mas já me vestia do jeito que me visto hoje. Olhe aqui: eu fantasiado de índio. De noiva. O que acontece é que, antes, a imprensa me chamava de débil mental, de maluco, de grosso. Dizia que meu programa não valia nada. Me chamavam de alienado. Atenção, Seu Machado, eu disse a-lì-e-na-do! E agora? Agora a imprensa intelectualizada é obrigada a me aceitar, a reconhecer o meu valor. Eu sou a Rei do Tropicalismo!

Chacrinha insiste nesses dois pontos: o seu orgulha por ter sido o verdadeiro inventor do estilo tropicalista e o seu ressentimento contra os "pseudo-intelectuais" que o atacam, enquanto aplaudem Gil e Caetano. Quando lhe perguntam qual é a intenção de seus prograrnas, Chacrinha responde apenas que tudo é espontâneo, e em seguida muda de assunto.

Admiro muito o Caetano e o Gil como cantores e compositores. E Os Mutomes também. Mas êles todos me imitam. Muita gente me imita. Em quase tôdas as capitais dó Brasil existe pelo menos um falso Chacrinha. Mas não tenho ciúmes, não. Não quero exclusividade. O tropicalismo de Caetano, se não se comunica com a massa, é porque não é autêntico. Eu, não. O povo me aceita porque sou o único autêntico. Há mais de vinte anos. Aliás, acho que a palavra tropicalista vai desaparecer, mas, mesmo depois do Caetano partir pra outra, quando não se falar mais no assunto, eu continuarei tropicalista. Sempre fui. Há mais de vinte anos.


Uma questão de desordem

Para Chacrinha, como para uma boa parcela da opinião pública, o tropicalismo é apenas uma maneira de se apresentar. A fantasia faz o tropicalista. As atividades paralelas de Gláuber Rocha, José Celso, Libero Rípoli e outros lhe escapam totalmente. A relação entre o artista e o pública nunca o preocupou — é que Chacrrnha domina o auditório. Êste, aliás, é o aspecto de sua atuação que mais interessa a Rogério Duprat. Maestro, compositor erudito, arranjador das músicas do grupo baiano, Rogério Duprat é antes de tudo um intelectual vigorosamente comprometido com a destruição de todos os valôres tradicionais:

— O que importa, hoje, na música, é o que acontece quando ela é executada. Não queremos mais a tal de Arte. Hoje ela deixou de ser um objeto do artista e passou a ser um resultado coletivo. Todo mundo cria. O que importa é o happening, o acontecimento. Existem ordens e ordens. Umas são fardadas, rígidas; outras são do tipo da que impera nos programas da Chacrinha, por exemplo. Assim, no disco É Proibido Proibir, acha que o lado mais importante é aquêle gravado ao vivo, com as vaias do pública e o discurso de Caetano.

Duprat considera a música como algo já esgotado. Tudo já foi feito, qualquer sofisticação melódica, rítmica ou harmônica é inútil.

— Por isso, a música de Gilberto Gil, Questão de ardem, desclassificada no festival, em São Paulo era propositadamente antirnusical. O que interessava era o acontecimento. E, se não quiserem chamar isso de música, então chamem a polícia...

Gilberto Gil endossa as palavras do maestro, e acrescenta alguns detalhes que explicam sua nova tendência. Em primeiro lugar, há uma preocupação maior em superar os limites impostos a uma melodia popular — duração, ritmo, tonalidade. Gil procura agora se aproximar mais das tendências da música negra internacional. Êste "nôvo-som", por seu caráter sensorial, físico, explosivo, parece ter resultado numa espécie de agressão ao ouvinte. — Mas a agressão não foi meu objetivo. Ela resulta do comodismq e da passividade de quem se sente agredido. O que importa para mim é a liberdade, e não me preocupo com o consumo que minha música possa ter. Se tiver, genial; se não, não importa, estamos ai. Só sei que não devo me submeter ao mêdo apocalíptico que domina êste País e é a principal doença da música popular brasileira.


A rumba do Terceiro Mundo

A liberdade de criação é para José Carlos Capinam, várias vêzes parceiro de Gil e Caetano, a base vital do tropicalismo. Poeta e letrista consagrado, Capinam escandalizou a critica ao usar pela primeira vez o "portunhol", o que vem a ser uma mistura de português com espanhol:

— Na minha Soy Loco por ti, América, que fiz de parceria com Gil, senti mais possibilidades do que ao compor a letra de Ponteio. Dizem os críticos que uma rumba não pode ser música brasileira e que não se podem fazer versos com palavras em castelhano. Seria o caso de perguntar: e daí? A cultura brasileira, para mim não é mais exclusividade regional, é a cultura de todo o Terceiro Mundo, de tôda a América Latina, de todos os países subdesenvolvidos. Se os problemas nacionais são os mesmos dos outros países latinos, temos o direito — mais até: o dever — de nos expressar também em espanhol. O tropicalismo nos dá a liberdade necessária para enfrentar êsse dever. O artista que policia sua fôrça criadora pretendendo falar a linguagem do povo comete um duplo engano. Primeiro, êle pensa estar falando a linguagem do povo; segundo, o povo pensa estar ouvindo através dêle a verladeira voz da arte.

Capinam reitera outra constante do tropicalismo, a busca da coisa nova dita de maneira nova. Isto ficou claro quando Torquato Neto afirmou que existiam muitas maneiras de fazer música brasileira, e êle preferia tôdas. Esta flexibilidade é que determinou o envolvimento de vários conjuntos de música jovem no movimento. Em quase todos os discos ou shows tropicalistas são presença constante os Beat Boys e Os Mutantes. Para êstes, por exemplo, tropicalismo é um nome prático, que foi encontrado para definir um certo tipo de investigação musical, que se está fazendo atualmente e no qual várias tendências se entrecruzam.

— É mais fácil dizer a um repórter a palavra tropicalismo do que explicar, com detalhes, o que queremos fazer. Tenho a impressão de que a principal característica do nosso tropicalismo é a ironia que introduzimos em todas as formas musicais acabadas. Essa ironia as embeleza. E nós, Mutantes, queremos fazer uma música, acima de tudo, bela e alegre.


Nem tudo é da Bahia

A procura, acima de tudo, da beleza e da alegria, é a constante mais evidente nas músicas de Tomzé, outro rnembro do grupo baiano. Especialmente em suas letras, Tomzé lida com os grandes mitos criados pela publicidade — a boa aparência, o otimismo pela técnica, os crediários, os preconceitos e a desinformação. Freqüentemente emprega ditos, ou mesmo quadrinhos populares, como base para suas composições. Não se trata porém de recolher "desafios" ou expressões do cangaço:

"Antigamente, um rapaz bem educado

não dizia palavrão

não pedia fiado

e nem cuspia pelo chão".

A irreverência de cantador nordestino esconde á personalidade de um artista que se atualiza constantemente com os mais recentes estudos sôbre Comunicação de Massa. Ainda pouco conhecido do público, Tomzé tem sempre uma surprêsa para os que travam contato com êle pela primeira vez:

— Por ser o mais velho, sou o mais urbano do grupo baiano. Daí eu ser o mais tranqüilo e, digamos assim, o mais bem educado. Por exemplo, eu respeito muito o Chico. Quer dizer, eu tenho que respeitar. Afinal de contas, êle é meu avô!

O humor ferino também está presente nas letras de Torquato Neto, um piauiense "naturalizado" baiano e residente em São Paulo. Conhecido como o lírico poeta que fêz Pra te Dizer Adeus em parceria com Edu Lôbo, Torquato tem hoje, talvez, a posição mais radical entre as letristas brasileiros:

— Quando fiz a letra de Louvação tinha absoluta certeza do valor de tudo, de cada coisa. Dai a separação que fiz, dividindo o mundo em duas metades bem definidas — louvando o que bem merece e deixando o ruim de lado. Hoje, já sou capaz de distinguir entre um fato particular e o processo a que êle pertence. Eu não sou de plantar bananeira em apartamento, e quando compus Mamãe-Coragem não fui movido por nenhum sentimento edipiano. O que me preocupava era desmitificar um valor estabelecido, simplesmente porque era estabelecido. No caso foi a mãe, azar. Podia ter sido o mito do Diploma, o anel de Doutor, sei lá. A nós, tropicalistas, não interessa derrubar o Príncipe e deixar que sobreviva o Princípio.


Os meios para os fins

O maior contato entre o tropicalismo e a Jovem Guarda foi o estabelecido por Gal Costa, umá garôta de 22 anos e intérprete oficial do grupo baiano. Sempre que pode, Gal aparece nos programas de Roberto Carlos, tendo até defendido uma composição dêle e de Erasmo Carlos em recente festival. Suas aparições na televisão chamaram jogo a atenção para uma voz afinadíssima e delicada, em contraste com suas fantasias "cafonas". Gal recusa-se a aceitar a hipótese de um abismo entre a Jovem Guarda e o tropicalismo. Ao contrário, entende o ié-ié-ié exatamente como uma ponte sem a qual a música brasileira ou nunca sairia do Barquinho ou se deteria no "barraco cuja porta era sem trinco".

— Independente de sua importância histórica, que é indiscutível, acho o Roberto genial. Não foi sem razão que o maestro Duprat colocou na gravação de Baby, na hora em que a letra diz "aquela canção do Roberto", uns acordes de Esta é a Nossa Canção. Acho essa música tão bonita, como a Michèle, dos Beatles. Para mim, o tropicalismo é exatamente isso, gostar das coisas sem mêdo. É por isso que vou gravar um "rojão" de Jackson do Pandeiro. Aliás, nesta época de passeatas, acho o ritmo muito apropriado...

Investindo contra uma série de valôres considerados intocáveis, infiltrando-se nas estruturas e delas procurando sair incólumes, é difícil aos tropicalistas fixarem-se por muito tempo num mesmo canal de tevê, numa mesma cidade. A recusa às concessões fáceis inspirou a muitos críticos uma imagem distorcida que levam até o público. Guilherme Araújo, que é empresário de Gil, Caetano, Gal, Tomzé e dos Mutantes, não esconde o problema:

— Nós precisamos encontrar os meios adequados para a divulgação das criações do grupo. Mas há uma nítida resistência, nas estações de televisão, ao que é realmente nôvo. Veja, não é um problema de ser ou não ser comercial. O apoio que tivemos de Manuel Barenbein na produção dos discos dos meninos foi plenamente recompensado. O que existe é a ignorância, o mêdo de ousar. Por isso acho que prefiro o teatro, onde tudo o que fazemos vai por nossa conta e risco. Eu não tenho dúvidas sôbre a importância do tropicalismo, principalmente por tudo que falam contra êle. Afinal, ninguém dá pontapé em cachorro morto.


Os críticos afiados

Enquanto a Jovem Guarda foi dissecada principalmente por sociólogos e psicólogos, o tropicalismo atraiu em particular a atenção dos estudiosos da Teoria da informação. Os poetas concretistas Augusto de Campos e Décio Pignatari foram e continuam sendo os maiores divulgadores da importância do tropicalismo. Augusto vê na tropicália uma continuação do ciclo aberto por João Gilberto. Mas — esclarece — não se trata de uma continuidade linear:

— Eles deglutem, antropofàgicamente, a informação do mais radical inovador da bossa-nova. E voltam a pôr em xeque e em choque tôda a tradição musical brasileira, bossa-nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal.

Já o falecido Sérgio Pôrto nunca morreu de amôres pelo tropicalismo, e disso jamais fêz segrêdo. Quando do lançamento do disco Tropicália, em agôsto de 1968, assim o recebeu o criador de Tia Zulmira:

— A palavra tropicália, criada para dar nome a um movimento que fracassou de saída, por ser imitativo e sem imaginação, hoje lembra mais vigarice do que outra coisa.

E concluía;

— É uma pena que artistas de talento como Gil, Caetano, Gal Costa e Torquato Neto estejam metidos nessa besteira, que o menos exigente dos críticos honestos poderá classificar de subdesenvolvimento musical baiano.

Na mesma página de jornal, comentando o mesmo disco, Ely Halfoun dizia que tudo era perfeito, a começar pela capa. Fazia apenas uma ressalva quanto à inclusão de Coração Materno, mas, no mais, definia o disco como um documento que deixava bem claro que "Gil e Caetano estão no caminho certo da nova concepção musical e que os camisolões são indispensáveis em suas apresentações".

O jornalista Chico de Assis sempre entendeu o tropicalismo como a mais rematada pilantragem, um doloroso desvio no caminho dos baianos, êsses mesmos baianos humildes e simples que conheceu anos atrás. Sua coerência evitou-lhe a desespêro de alguns adesistas de primeira hora, como o compositor Nélson Motta, que, tentando acompanhar o movimento, perderam o fôlego:

— Com os cinco anos de amizade e admiração, considero-me com inteira liberdade para dizer que Gil, com seus atuais gritos, consegue, no máximo, chatear. Não agride a sensibilidade ou os valôres, agride fisicamente o ouvido. Uns pedem mais silêncio, outros menos colares, outros mais participação. Êste último é o caso de Geraldo Vandré, artista que considera o tropicalismo uma mera tentativa de folclorizar nosso subdesenvolvimento. Acha a tropicália pouco "participante" politicamente. A réplica é de Augusto de Campos:

— Os que querem a música participante, em formas conservadoras, folclóricas, deveriam lembrar-se do que disse o maior dos poetas participantes de nosso tempo, Vladimir Maiakovski: não pode haver arte revolucionária sem forma revolucionária. Não adianta transformar o Che em clichê.

Um tipo mais recente de interpretação descobre um curioso paralelo entre o tropicalismo e o movimento negro americano. Lá, os prêtos procuram voltar aos padrões da Terra Mãe, organizando-se em tôrno de centros de estudos da língua e da cultura africanas. Os salões especializados em alisar cabelos vão perdendo dia a dia a sua freguesia tradicional. Os ternos vão deixando lugar para os vaporosos e coloridos trajes africanos — mesmo que sejam feitos em série. Não seria isto o que estaria sendo feito aqui — mesmo inconscientemente — pelo tropicalismo? Caetano, ao aparecer com a cabeleira encaracolada, não estaria querendo emancipar um povo de sua preocupação em acompanhar padrões estéticos que o obrigaram a se ver às voltas com toneladas de brilhantina? Seus camisolões floridos, seu terno de linho branco, não seriam apenas sugestões de bom senso para um clima tropical como o nosso? Será o tropicalismo uma volta à Terra Mãe, uma proposta de abandono dos critérios de progresso que até aqui foram aceitos, passando o Brasil a se ocupar com seu papel de superpotência no Terceiro Mundo?

A todo instante o tropicalismo se refaz e se transforma, deixando sempre um rasto de interrogações. A agitação dos críticos que se atiram à tentativa de resolver êste enigma contrasta com a tranqüilidade dos próprios tropicalistas. Fora êles, a tranqüilidade é resultante da confiança que têm no seu trabalho e que pode ser resumida numa frase de Capinam:

— De tanto ver triunfar as nulidades, hei de vencer!


[Realidade, ano III, número 33, dezembro de 1968]