PHONO 73

Documentário de uma época em transe

Tárik de Souza

 

 

Em 1973, a antiga Phonogram (atual Universal) resolveu realizar um festival compacto utilizando apenas seu elenco tão influente quanto popular..Foi o que foi feito no auditório do Palácio das Convenções do Anhembi durante três noites (de 11 a 13 de maio) para uma média de 3.500 espectadores por apresentação. Entre os astros da odisséia estão Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Jorge Ben, Gilberto Gil, Nara Leão, Gal Costa, Ivan Lins, Odair José, Wilson Simonal, Maria Bethânia, Wanderléa, Erasmo Carlos, Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Raul Seixas, MPB-4, Fagner, Jair Rodrigues, Toquinho & Vinicius, Jorge Mautner e Ronnie Von. Boa parte do material gravado no evento saiu sucessivamente em três LPs e posteriormente, já em 1997, em três CDs. Mas a revisita a este encontro fundamental se justifica duplamente. Na parte de áudio, os CDs foram remixados e condensados em duas unidades. E complementa o lançamento um DVD inédito com imagens raras e históricas gravadas nos espetáculos e ensaios por Guga (irmão de Boni) de Oliveira para a Blimp Filmes, captados por seis câmeras Arriflex, em películas de 35 mm.

São imagens preciosas de uma MPB em ebulição, politicamente atuante, incômoda para a ditadura então vigente, que tenta cassar-lhe a palavra. Pela primeira vez, para quern não esteve lá, é possível flagrar o drama de Chico Buarque e Gilberto Gil sendo progressivamente calados ao cantar a parceria "Cálice". Um a um os microfones vão sendo desligados, depois que a dupla reduzida ao refrão ("pai afasta de mim esse cálice/ de vinho tinto de sangue") tenta entoar uma onomatopéia abstrata ("shalaô oticala/ shalá-á/ lá omelê/daracumdá/ paracumdá"). Chico aumenta o tom de seus "cálice", reclama do sucessivo corte de som nos microfones e contrabandeia um "arroz à grega" para o vocalise da letra censurada. Não se contém e desabafa: "Estão me aporrinhando muito. Este negócio de desligar o som não estava no programa", exalta-se. E passa "ao que pode", cantando com fúria redobrada "Cotidiano" e "Baioque" (com o MPB-4). Se rola essa tensão política por um lado, de outro vibra uma distensão estética, no encontro de Caetano Veloso com o brega assumido Odair José ("Vou tirar você desse lugar") recebido por um princípio de vaia, abafada por aplausos. E na escalação de Ronnie Von a Erasmo Carlos e Wanderléa para essa festa de arromba de uma MPB ainda um tanto ressabiada com misturas. Tudo isso transparece no CD. Mas as imagens do DVD captam cenas que valem por mil músicas como a de Caetano Veloso literalmente beijando os pés de Jorge Ben (ainda sem o Jor), na celebração tribal de "Filhos de Gandhi" com Gilberto Gil, numa antevisão do que as futuras gerações fariam com a obra do desbravador do samba-rock. Antes, em outras passagens, ouve-se Ben remodelar a seu feitio blueseiro a canção "É de manhã", que lançou Caetano em 1965. E suingar com "Que nega é essa?", "Mas que nada" e a desestabilizadora "Jazz potatoes", sob medida para "jams" arrasadoras.

Numa época em que a obsessão com a beleza magra ainda não tinha saltado das passarelas para as academias, salas de cirurgia plástica ou consultórios médicos, o DVD atesta a forma afiada da (então) moçada. Quase todos magérrimos, semidespidos como as lindas Maria Bethânia (rodopiaste em "Rosa dos ventos") e Gal Costa (devastadora em "Sebastiana"). Elas ainda se encontram no beijo ensaiado durante o duo em "Mãe Menininha do Gantois", irrevogável obra-prima de Caymmi. CD e DVD complementam-se quanto a repertório. Há números filmados que não estão no disco e vice-versa. Como por exemplo de imagens, o anárquico Sérgio Sampaio, magro dos magros, botando seu bloco na rua, numa época de medo de outros tipos de arrastões.

Teatral, num elegante pretinho básico (após aparecer enrolada numa toalha nos bastidores, em cena gostosamente íntima), Elis Regina desfia a enfumaçada "Cabaré" (João Bosco/ Aldir Blanc), outra que não está no CD, sob o bandoneón de Ubirajara Silva, pai de Taiguara. Raul Seixas entra nos dois a bordo da corrosiva "Loteria da Babilônia" (com aplicações de funk à James Brown no final). Mas só no DVD ele prefacia "Let me sing". O polimorfo Gilberto Gil, atual ministro da Cultura do país, reveza-se em duetos com Chico Buarque e Jorge Ben. E profetiza solitário sua advertência em "Meio de campo": "a perfeição é uma meta/ defendida pelo goleiro".

Outro avatar dos palcos, seu comparsa Caetano Veloso, enfia cantoria de cego, citações e improvisos numa épica releitura do clássico "A volta da Asa Branca" (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas) (desdobrada em "Eu só quero um xodó"), parte cantada no chão, num vôo arrojado incorporado por roqueiros subseqüentes. Da placidez zen do poeta militante Vinicius de Moraes empunhando seu copo de uísque em dueto com o parceiro Toquinho em "Meu pai Oxalá" (só no DVD), ao abandono de Gal Costa numa lânguida "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, comboiada pela platéia (só no CD), mais que um produto multimidiático, Phono 73 opera como um documentário. É o retrato cantado de uma época em transe. E como pulsa!