PHONO 73

Tárik de Souza entrevista
André Midani
(Presidente da Phonogram - atual Universal Music - à época da Phono 73)

 

 

  • Tárik - Queria inicialmente que você falasse como organizou aquele elenco sensacional da Phonogram.

    André - Quando eu entrei na companhia, em abril de 1968, vindo do México, a empresa tinha algo como 150,160 artistas contratados. Logo imaginei que era impossível lidar com esse número a contento, sobretudo o que chamamos de artista bom. Os que chamamos de não tão bons estavam disponíveis. Uma quantidade grande passava seu dia na gravadora. Esses eram evidentemente os menos bons. A primeira coisa que fiz foi pegar as gravações dos 160 artistas e, em casa, tranqüilamente, ouvir... ouvir... Isso demorou umas três semanas.
    Daí, se minha memória é boa, ficamos com uns 50 e poucos, o que pelos padrões da época eram poucos artistas. Entre esses apareceram Gil, Caetano, Gal, Elis, que estavam querendo sair da companhia, com toda razão, porque não estavam recebendo a atenção que mereciam. Então, fiz essa primeira peneira. E a segunda coisa foi separar o que posteriormente viria a se chamar de MPB do que seria chamado de música popular, em dois selos. Philips para um e Polydor para outro.

    Tárik - Como você chegou a essas conclusões?

    André - Para mim era manifesto que a força motora da MPB naquela época vinha do lado baiano. Pensei então que a companhia deveria se concentrar sobre esses artistas, tendo ao lado Elis Regina. Assim começou e ali fui tirar o fio da meada. Mais o Chico Buarque e o Jorge Ben, que tinham desaparecido da história. Havia uma música brasileira pujante, contestatória. Mas não só politicamente. Contestatória no sentido de comportamento. E pelo que estávamos vendo no mundo inteiro, tudo se encaminhava para esse novo tipo de pensamento. Foi assim que começou. E essa nova imagem da companhia me ajudou muito. Tanto que foi relativamente fácil trazer o Chico Buarque, porque havia uma empatia por parte dele para vir. Um dia me sentei para conversar com o Erasmo Carlos. Eu o achava mais interessante que o Roberto Carlos pelas letras que escrevia. Perguntei a ele: "você não conhece ninguém que seja fantástico?". Ele disse que tinha um cara maravilhoso chamado Tim Maia, um louco. Dias depois, jantando com os Mutantes, fiz a mesma pergunta e eles disseram: "olha, tem um cara sim, Tim Maia, maravilhoso, louco". Me lembro de ter colocado o Manoel Barenbein atrás dele até descobrir onde estava esse Tim Maia.

  • Tárik - Os próprios artistas faziam indicações.

    André - Fui pelos baianos. Perguntei ao Gil e ao Caetano e eles disseram que o Jorge Ben estava fazendo falta. Pedi outra vez ao Manuel: "busca o Jorge". Ele estava tão mal na carreira que pedi ao Caetano e ao Gil: "vocês me ajudam nessa história porque a companhia sozinha não vai poder levantá-lo". Eles disseram: "a gente ajuda". Tanto que as primeiras músicas foram para Gal e eles começaram a dizer que ele é o pai da música brasileira. Quanto à Maria Bethânia, não tive que perguntar a ninguém. Mas quando demonstrei grande vontade de contratá-la, ela foi muito elegante e veio quase espontaneamente. Depois, a gente se dedicou a fazer mídia disso, a colocar isso tanto nos jornais quanto no rádio. Tendo artistas tão fabulosos e uma dedicação inteira à promoção deles, fez com que os que vendiam 4, 5 mil discos passassem a vender 40, 50 mil. E num instante, essa companhia que tinha penado durante quase, acho, dez anos, perdendo dinheiro, sem grande participação no mercado, no espaço de dois anos tornou-se ,muito lucrativa. E ao mesmo tempo com algo da ordem de 18%, 19% do mercado, vindo de 7% ou 8%. A companhia ficou como porta-voz dos artistas que estavam lutando por uma linguagem não somente mais contemporânea, mas que também contestava a situação política da época, no caso a ditadura.

    Tárik - Mas como você chegou à idéia do festival com todos os artistas da própria gravadora? Vale lembrar que em 1972 teve o último daqueles grandes festivais competitivos. A Phono 73, de certa forma, supriu essa lacuna que já se abria.

    André - É exato. Em 1972, já estávamos chegando ao fim do ciclo dos festivais, porque os artistas não queriam mais competir. Tinha dado muitos problemas com a Censura um ano antes, com a Nara Leão no Festival Internacional da Canção. Pessoalmente, eu achava que o festival não precisava ser competitivo e poderia muito bem ter sucesso. Não vou dizer que tive essa idéia. Foi num grupo de trabalho que nasceu a idéia e eu achei a coisa maravilhosa. O artista entra, canta uma música de sucesso dele, canta uma inédita, vem outro artista e canta uma música junto. De tal maneira, o festival poderia apresentar coisas realmente extraordinárias, completamente diferentes. Esse era o motivo porque a gente achava que não precisava ser competitivo. Se a criatividade artística fosse de tal forma incentivada, não era mais a competição, era a curiosidade que levaria as pessoas ao festival.
    Evidentemente, a gente não conseguiu que todos os artistas compusessem uma música para a ocasião,. nem que se juntassem em duplas com uma inédita ou não, mas tivemos momentos fantásticos como o "Cálice" do Gil e do Chico. Tivemos o primeiro beijo em público de Gal e Bethânia e cantaram juntas "Oração de Mãe Menininha", que foi um grande sucesso. Tivemos o Caetano com o Odair José e assim foram vários momentos.

  • Tárik - Houve também uma preocupação com o espetáculo. Vocês escalaram uma equipe muito boa, o Manoel Carlos, o Guilherme Araújo e até o Ziembinski.

    André - Alguém me disse no grupo de trabalho, não sei se foi o Rubem Fonseca ou o Artur da Távola: "não esquece o Ziembinski". Ele veio para o Brasil como iluminados Era uma época maravilhosa, ainda muito ingênua, onde todos, o Manoel Carlos, o Ziembinski, eu mesmo, o Roberto Menescal, o Armando Pitigliani, que eram diretores artísticos, todos tínhamos uma ingenuidade muito grande. Isso permitia dizer aos artistas: "vamos fazer". E aí detonava-se uma temperatura ambiente, onde se trabalhava com a maior energia, com o maior prazer, com o maior entusiasmo. Fui justamente eu perguntar ao Zjembinski: "o senhor não se incomodaria de fazer a iluminação". E ele: "não. Seria pm prazer, uma honra, porque é uma coisa que eu adoro, conta comigo". Lá chega ele no Anhembi, em São Paulo - nós estávamos inaugurando a sala, que não nos cobrou nada. Ziembinski bota lá todas aquelas luzes maravilhosas. E começa o segundo dia, o seguinte aos Mutantes, depois de 15, 20 minutos estouram as luzes. O Ziembinski, desafortunadamente não pôde iluminar as três noites como gostaria.

    Tárik - Ele era orande diretor da montagem de "Vestido de noiva", do Nelson Rodrigues, peça que se notabilizou também pela iluminação arrojada.

    André - Era uma coisa muito provocante. A gente dividiu a produção. Tinha o Guilherme Araújo na parte dos baianos e MPB, o Manoel Carlos supervisionando, o Jairo Pires e o Manoel Barenbein para outras áreas. O Armando Pitigliani dedicou corpo e alma. Fez tudo o que podia e não podia para gerir tudo isso. Era uma companhia de discos e nada se sabia dessa área de transporte, de infra-estrutura.

  • Tárik - Na época, não existia isso de gravadora produzir show.

    André - Não tinha isso. Nós tínhamos uma pequena experiência com a Elis Regina, mas tudo individual. Tínhamos arquitetado a gravação do Chico Buarque na Itália, em 1969. Hoje em dia todo mundo grava em todo lugar, mas naquela época... O Rogério Duprat, se não me equivoco, fez os arranjos para o disco que tinha "Rosa dos ventos", o primeiro que Chico gravou para a gente. O Rogério estava aqui e o Chico lá. Então gravou-se as bases aqui e o produtor Barenbein foi para lá gravar a voz. Nara Leão gravou em Paris, Caetano e Gil gravaram em Londres. A gente tinha uma maneira de olhar as coisas que permitia essa flexibilidade.

    Tárik - Como foi feita a combinação do elenco da Phono 73? Na época, não era muito comum que artistas de segmentos diferentes se apresentassem juntos. Houve problemas?

    André - De jeito nenhum. Não houve atrito. Quando a gente se reuniu com a Bethânia e a Gal e perguntou: "vocês gostariam de cantar juntas?". Disseram: "claro, adoraríamos". No caso do Caetano, eu me lembro, foi num jantar e perguntei com quem ele gostaria de cantar. A conversa nos levou para o absurdo da época; que seria o Odair José. Não houve imposição, porque também não daria certo. O Gil e o Chico ainda não tinham trabalhado juntos até aquele momento.

    Tárik - O Gil foi meio coringa do show, não? Cantou com o Chico, com a Elis, com o Jorge Ben...

    André - O Gil é um grande trabalhador, um grande operário. Até hoje, como ministro, é um grande operário. Ele sempre teve essa generosidade de participar de alguma coisa e perguntar: "que posso fazer mais? Posso contribuir mais? Posso ajudar mais?". Ele, de fato, trabalhou com todos aqueles artistas. E Gil e Jorge, você viu, é uma coisa louca, louca, louca.

  • Tárik - Foi dali que saiu o embrião para o encontro da dupla em disco?

    André - Não. O embrião surgiu num encontro na minha casa, num dia em que o Roberto Stigwood, que tinha a RSO Records, veio com o Eric Clapton de férias. O Stigwood me perguntou: "por que você não faz uma reunião do Clapton com os artistas brasileiros?". Então, naquela noite, foram na minha casa, Jorge, Gil, Caetano, Rita Lee, Erasmo Carlos, muita gente. Todo mundo foi buscar seus violões, exceto Clapton, que já tinha trazido o dele. O Armando Pitigliani foi buscar uma tumbadora e se fez uma roda. O Cat Stevens estava também. De repente, o Cat saiu da roda, a Rita também, não sei se nessa ordem, saiu o Caetano. Eu sei que no fim ficaram Clapton, Gil e Jorge. Aí o Clapton disse: "para mim não dá mais". E também saiu. Ficaram só Gil e Jorge e foi memorável, memorável. E eu disse pro Pitigliani: "amanhã tem que entrar no estúdio". A gravação ficou maravilhosa. Mas o estúdio só reproduziu 40%, 50 % do que tinha sido aquela noite em casa, espontaneamente.

    Tárik - No espetáculo da Phono 73 tem pelo menos dois pontos de tensão. Um deles, no encontro do Caetano com o Odair José, que era o brega com a MPB. Na época, surgiu algum receio de que pudessem acontecer vaias como nos festivais?

    André - Claro, claro. Mas o Caetano era uma pessoa tão provocadora que se viessem vaias, e vieram, era melhor ainda.

    Tárik - Numa intervenção dele, ele chama o evento de "Caphono 73" e diz que não há nada mais Z que um público classe A.

    André - Exatamente. O Caetano sabia e houve muitas vaias. Ouvi as fitas lá no estúdio, foi um vai-e-vem de vaias. Não vou dizer que era isso que ele queria. Mas tendo isso, ele se fortalecia na provocação genuína que ele sempre fazia para evitar certos preconceitos. Tanto de estilo quanto de classe social, como de postura política. Acho que Caetano e Gil foram, entre outros, portadores realmente de pensamentos que, na época, eram desconhecidos nas cabeças das pessoas. Por exemplo, o Chico Buarque, que por outro lado tem uma humanidade nas suas letras, um conhecimento do povo brasileiro, um conhecimento da sensibilidade brasileira que não há igual nesse período da poesia brasileira - nem o Vinicius - é um contestatório mais estabelecido, dentro de padrões, de tradições mais lógicas ou mais coerentes. Os outros dois (Gil e Caetano), não. Ao contrário, era vamos acabar com tudo, recomeçar do zero, porque esse pensamento nosso, compartimentado, não dá mais. Temos que destruir isso. Daí se originou a famosa briga entre Caetano e Chico, que nunca foi uma briga entre eles dois e que sempre foi uma briga entre seus seguidores.

  • Tárik - No ano anterior tinha acontecido Chico e Caetano na Bahia.

    André - Exato. Eu estava jantando na Bahia. Foi um advogado, amigo dos meninos, do Gil, do Caetano, da Bethânia e da Gal quem falou: "você, que todo mundo diz que é o bicho-papão, quero ver você reconciliar Caetano e Chico". A idéia não foi minha, foi desse camarada. Eu disse: "sou papão, talvez, mas assim também não". Mas a idéia ficou. Um dia, Caetano disse num jantar: "esse negócio com o Chico, isso já está durando muito, não agüento mais". Pèrguntei: "você faria alguma coisa com ele?". "Claro", ele disse. "Pode ser um concerto, para que todo mundo saiba". Não sei se foi exatamente assim que aconteceu porque já se passaram muitos anos. Mas o resultado foi que marquei um jantar com o Chico e perguntei. E tive a mesma reação da parte dele.

    Tárik - O outro ponto de tensão, ainda mais forte, era a questão da Censura que proibiu o "Cálice". Como foi o episódio? Houve uma censura direta, pressão nos bastidores?

    André - Eu não estava lá naquele dia. Quem viveu isso diretamente foram Pitigliani, Menescal, o advogado da companhia, João Carlos Muller, além dos atores do fato. Os dois compuseram a música para apresentar na Phono 73 e a letra foi censurada. Eles começaram a cantar sem letra. Claro que havia polícia, porque havia em todo lugar. E nossa companhia era a companhia-mór no sentido de problemas com a Censura. Volta e meia, João Carlos e eu tínhamos que ir a Brasília. Então, quando se anunciou esse bando de artistas, suponho que a Censura tomou precauções. Mais do que normalmente teria tomado. Segundo me lembro pelos relatórios e conversas da época, a mesa de som mandava o som para uma estação de rádio. A mesa de gravação gravava e mandava o som pra sala e ainda tinha o som do palco. Tenho impressão que primeiro o som do palco foi desligado pelos caras. Aí um deles mandou desligar a sala. Me lembro do Menescal dizer: "o que eu não fiz foi desligar a rádio".

  • Tárik - Por causa disso o som sobreviveu até hoje.

    André - Sobreviveu alguma coisa.

    Tárik - O Chico fala algo como "arroz à la grega". Ele finge que está cantando uma coisa que não poderia, porque na época os jornais publicavam receitas no lugar das matérias censuradas.

    André - Exatamente, foi isso. O MPB-4 ia trazendo os microfones para o Chico, que eram desligados pouco a pouco. Houve por parte dele o sentimento de que a gravadora é que tinha desligado esses microfones. Mas posso dizer que tenho certeza que a companhia não desligou. Ela estava sumamente comprometida com esse processo todo. Inclusive com o Chico a gente correu um risco grande de endossar a invenção do nome de um compositor e encher aquele baú de canções que se mandava para a Censura com as dele.

    Tárik - Julinho da Adelaide.

    André - Isso. Então não havia porque aquele belo dia desligar. A companhia estava naquela batalha. Mas tem que entender que o momento era muito tenso, a relação da música com o governo era muito tensa. Todo mundo era menino nessa época e se exaltava e o Chico teve essa impressão. Talvez alguém tenha soprado isso para ele.

    Tárik - É engraçado porque "Pesadelo", do Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, que tem uma letra muito mais direta - "você corta um verso e eu escrevo outro/ você me prende vivo e eu escapo morto". Puxa, mais direto que isso... Essa música passou, foi apresentada pelo MPB-4 na mesma Phono 73.

    André - Como sempre quando há decisões arbitrárias, acontecem coisas incompreensíveis.

    Tárik - Quais os momentos mais memoráveis do evento?

    André - Bem, tem esses que a gente já mencionou, envolvendo Gil, Chico, Caetano, Odair, Bethãnia e Gal e outros momentos de pujança. Por exemplo, "Vou botar o meu bloco na rua", do Sérgio Sampaio, tem uma pujança na gravação de áudio absolutamente emocionante.

    Tárik - Havia também uma geração que estava aparecendo. O Fagner estava começando.

    André - Obrigado por me lembrar. Eles estavam no início, como outro de pujança enorme, o Raul Seixas. A Sociedade Alternativa como projeto social-político caótico, claro, mas não com uma canção só. Com o lançamento de uma idéia, mas já tomando uma atitude. Por exemplo, a performance da Wanderléa é absolutamente genial quando você analisa por dentro. Era a menina dos olhos da Jovem Guarda. A gravação começa bem comportadã e de repente se vê aquela mulher rasgando-se, com uma roupa inacreditável, gritando, se arrastando pelo chão. Acho que são coisas notáveis.

  • p class="Domanda"> Tárik - Tem uma cena incrível do Caetano beijando os pés do Jorge Ben. Quase uma metáfora do que ia acontecer. Era o que a geração seguinte faria.

    André - Essa também foi fantástica.

    Tárik - O próprio Caetano durante a apresentação dele se atira no chão, rola, uma coisa que as gerações posteriores do rock, do punkfariam. Ninguém fazia isso.

    André - Ninguém. Acho também que Caetano e o Gil sempre reverenciaram o Jorge. Talvez essa tenha sido a reverência mais pública, mais sincera, direta. Na Phono também houve um outro acontecimento, com a Elis Regina. A pressão em cima dos artistas era muito forte e o empresário dela, o Marcos Lázaro, disse que ela tinha que cantar nas olimpíadas militares. Ela já era muito politizada, mas deve ter sido convencida pelo Marcos que era necessário fazer isso para aliviar a pressão do governo, dos militares que se sentiam boicotados pelos grandes artistas. Ela foi lá, cantou, a imprensa e a inteligência caíram matando em cima como uma traidora, coisa que naturalmente ela nunca foi. A Phono 73 ocorreu pouco tempo depois. De maneira que quando ela chegou no palco, o público ainda estava sob o impacto dela ter traído a causa. Aí ela levou uma grande vaia. O Caetano subiu no palco e protestou. (Midani fica com a voz embargada) Ah, eu fico facilmente emocionado pelas coisas boas. Pelas ruins, não choro, mas pelas boas fico muito emocionado. E a Elis cantou o "Cabaré", do João Bosco. Fé, foi e emplacou. Ela foi digna, não reclamou nem nada. Recebeu a vaia, esperou-o fim da vaia e começou a cantar.

    Tárik - Você como presidente da empresa, sendo estrangeiro, sofreu muita pressão do governo por estar a toda hora na Censura?

    André - Eu tive mais pressão das alas de esquerda intelectuais do que do governo. Sim, toda vez que acontecia alguma coisa tinha que ir lá responder, como, por quê? Nunca foram visitas agradáveis. Nunca foram interrogatórios agradáveis. Fiquei pensando: "se falam assim comigo, imagine com os meninos, os estudantes, qualquer pessoa". Num encontro em que o cara lá da polícia ficou me interrogando, ele perguntou: "você não tem vergonha?". Dei uma resposta que não achei que fosse ofensiva, porque meu papel lá era de apagar incêndio, não de provocar. Aí ele pegou o revólver dele, botou em cima da mesa e disse: "se eu não estivesse de serviço te dava um tiro com essa pistola". Aí eu pensei: "se comigo que era estrangeiro, presidente de multinacional, portanto completamente protegido, blindado, falavam assim, imagine...". Agora, no sentido da Censura, sempre foi desagradável, mas nunca me senti em perigo por causa da censura de uma canção. Só depois, muito depois, mas não tem a ver com isso. Já a militância de esquerda, era todo dia. E você vai se lembrar de um artigo em que o Glauber Rocha me chamava de agente da CIA, o que era um resumo do pensamento da esquerda. O Glauber tinha conversado comigo no Antonio's várias vezes sobre isso, mas nunca pensei que ele fosse falar isso de público. Ele dizia: "basta de estrangeiro resolvendo as coisas neste país, a gente é que tem de resolver". Acho que ele tinha e tem toda razão, mas não vejo porque ia me penitenciar por ser um estrangeiro, já que ninguém se interessava em fazer e eu fazia as coisas.

    Tárik - Como foi escolhido o elenco. Quem ficou de fora reclamou?

    André - Não me lembro de ter recebido queixas.

  • Tárik - E o disco saiu logo em seguida, não foi?

    André - O esquema era bem profissional. A noite acabava e o Paulinho Tapajós pegava as fitas, acho que era ele quem fazia isso, vinha para o Rio e tinham vários produtores já editando. Via-se o que tinha qualidade e o que não tinha, porque a gravação ao vivo naquela época não era grande coisa, né. Então, considerando-se a Censura e a qualidade técnica, foram montados esses três discos. Não houve proteção a ninguém, nem nada. Evidentemente o "Cálice" a gente sabia que não podia botar porque já tinha dado bastante problema.

    Tárik - E a parte visual foi o Guga de Oliveira que realizou?

    André - Aí foi uma transa direta entre o Armando Pitigliani e o Guga. A gente não tinha muita noção do que a Phono 73 iria representar. Era um concerto que a gente tentava fazer com os meios possíveis.

    Tárik - O som era mais valorizado que a imagem.

    André - Exatamente. O Armando entrou em contato com o Guga, que ele conhecia e perguntou: "Guga você quer filmar? Depois a gente acerta". Foi feito assim. Quando o Armando foi acertar com o Guga, se não me falha a memória, ele me disse: "O Guga tá querendo um dinheiro que não é possível". Então ficou assim. Parado. As fitas foram se perdendo e botaram no Museu da Imagem e do Som e ficou nisso. O museu pegou fogo e o que sobrou foi uma montagem que o Guga pediu para a cineasta Ana Carolina fazer. Eu tinha até esquecido o que tinha sido filmado. Eu ia no estúdio da Universal para ouvir as gravações, o áudio, porque achava que tinham músicas que na época não faziam sentido, ou por um motivo ou outro não foram lançadas. E, de fato, tem coisas absolutamente maravilhosas que estão, até agora, inéditas. Um personagem que tem grande participação também é o Jair Rodrigues. Participação de anfitrião, da parte mais popular, com o Ronnie Von. Ele era bom com aquele jeito todo desarrumado. Só no Brasil tem coisas assim de uma espontaneidade, absolutamente maravilhoso. E taí, trabalhando até hoje.

    Tárik - Lembro de quando você falou comigo deste festival, você disse: "agora só me falta o Roberto Carlos".

    André - Que depois virou um anúncio. A gente era abusado, né?

    (agosto de 2005)