1978

 

 

Pois já não vales nada, és página virada,
descartada do meu folhetim

Geisel chegava ao último ano de seu governo. Resistira às pressões da linha dura, mas não deixara barato para os opositores. Em março eclodiria no ABC paulista a primeira greve desde 1964. Mas um governo civil teria que esperar um pouco mais. Em outubro, o Colégio Eleitoral elegeria o general João Baptista de Oliveira Figueiredo como o último presidente do ciclo militar.

Em outubro, a Emenda Constitucional nQ 11, com vigência a partir de 1-1-1979, revoga o AI-5, e em dezembro é sancionada a nova Lei de Se- gurança Nacional, com penas mais brandas, possibilitando a revisão das condenações impostas. E, finalmente, um decreto permite o retorno dos banidos pelo regime.

De qualquer forma, já se respirava um pouco mais aliviado que nos anos anteriores, tanto que três canções de Chico - "Apesar de você" (1970), "Cálice" (1973) e "Tanto mar" (1975) - que estavam proibidas puderam ser gravadas no seu LP desse ano, que ele afirma ser um disco em que sua música começa a se livrar do sufoco imposto pela situação do país.

Outro sinal de que o ar estava mais respirável foi o fato de Chico ter ido a Cuba, em fevereiro de 1978, como jurado de um prêmio literário. O Brasil não mantinha relações diplomáticas com a ilha de Fidel, e era impossível ir diretamente para Havana. Marieta e Chico foram para Portugal, onde o compositor tinha um show, e de lá seguiram para a capital cubana. Na volta também passaram por Lisboa. Sem que fosse combinado, outros jurados - Fernando Morais, que voltara pelo México, e Antonio Callado, pelos Estados Unidos - chegaram ao Brasil no mesmo dia, embora em horários diferentes. E descobriram que, na verdade, o ar não era tão leve como se supunha. Todos foram presos e levados a prestar depoimento nos órgãos de segurança. As dez horas de detenção não desanimaram Chico, que voltou várias vezes a Cuba, tornando-se uma espécie de embaixador informal, função que lhe rendeu, além de algumas detenções, ameaças como a que recebeu no Natal:


Você lê jornais? Então sabe que seu "pai espiritual", Fidel Castro, está libertando milhares de presos políticos. O Brasil tem cerca de 400 e Cuba milhares. Onde há mais liberdade? "Cálice" a voz da razão quando grita a ideologia, não é? Você é o primeiro de nossa relação. O Comando de Caça aos Comunistas deseja a você, ativista da canalha comunista que enxovalha nosso país, um péssimo Natal e que se realize no ano de 1979 nosso confronto final.


O Brasil somente retomaria as relações diplomáticas com aquele país em 1985, durante o governo de José Sarney.

A censura exibia sinais de debilidade também no teatro. Em entrevista a IstoÉ, Chico dizia que


quando os censores vieram a assistir a peça, eles mesmos sentiram que já não tinham mais aquela prepotência com que se apresentavam há um ou dois anos. Agora eles sabem que cumprem um papel anacrônico. [...] Em outras épocas, chegavam dispostos a cortar tudo. Agora já se sentem como em fim de mandato.

A peça a que ele se referia era a Ópera do malandro.


Ao ler a notícia da morte do famoso bandido Gino Amleto Meneghetti, italiano radicado no Brasil, o diretor Luiz Antônio Martinez Corrêa pensou em fazer uma adaptação da Ópera dos mendigos (1729), de John Gay, e procurou Chico Buarque. Este, por sua vez, tinha um projeto semelhante com Ruy Guerra, que era a adaptação da Ópera dos três vinténs (1928), de Bertolt Brecht. Do estudo das duas peças nasceu a Ópera do malandro, que estreou no dia 26 de junho de 1978, no Teatro Ginástico do Rio, tendo no elenco Ary Fontoura, Maria Alice Vergueiro, Marieta Severo, Otávio Augusto, Elba Ramalho, Emiliano Queirós, Ivens Godinho, Vander de Castro, Paschoal Villaboim, Ivan de Almeida, Vicente Barcelos,Ilva Nino, Cidinha Milan, Elza de Andrade, Neuza Borges, Maria Alves e, Cláudia Jiménez.

Ambientada no bairro da Lapa, reduto da malandragem carioca, a peça mostra as transformações do país no final da Segunda Guerra, com o aumento da influência americana em todos os setores da vida brasileira. Duran e Vitória administram uma cadeia de bordéis. Teresinha, filha do casal, volta do exterior e se aproxima de Max, um ambicioso malandro contrabandista, para, juntos, criarem um empreendimento moderno em contraposição aos negócios ultrapassados do pai. As relações do poder com a marginalidade são personificadas no inspetor Chaves, a quem Max chama de Tigrão.

Além de escrever o texto, Chico compôs dezessete canções para a peça.


[Wagner Homem, Histórias de canções - Chico Buarque, Texto Editores Ltda (Leya), São Paulo, 2009]