JORGE MARAVILHA (1974)

 

 

Para conseguir a liberação, Chico criou novo subterfúgio, que consistia em inserir a parte que lhe interessava misturada a outros tantos textos que não tinham pé nem cabeça. A canção foi enviada à Polícia Federal, sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide, entre as estrofes abaixo:


Você não entendeu
Que o amor dessa menina
E a chama que ilumina
A minha solidão
O meu amor por ela
É uma cidadela
Construída com paz e compreensão


Aqui vinha a letra da que interessava


E o meu amor por ela
É uma cidadela
Construída com paz e compreensão
Somente paz e compreensão
Para sempre paz e compreensão
E eu vou velar por ela
Como uma sentinela
Guardando paz e compreensão
Somente paz e compreensão
Paz sempre paz e compreensão


Como não havia obrigação de gravar todo o texto aprovado, as es- trofes inicial e final foram simplesmente excluídas, restando o que de fato interessava.

Os intérpretes de entrelinhas logo vislumbraram na letra uma referên- cia ao general Geisel, cuja filha, Amalia Lucy, manifestara admiração pelas obras do autor.

Em entrevista a Tarso de Castro na Folha de S.Paulo, Chico revela a origem da imagem utilizada: "Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança, e no elevador o cara me pedir um autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo de delegado". Foram vãs as tentativas de esclarecimento, porque até hoje muita gente crê na interpretação fantasiosa. Respondendo à mesma questão em 2007 para a revista Almanaque, ele diz:


Nunca fiz música pensando na filha do Geisel, mas essas histó- rias colam, há invencionices que nem adianta mais negar. Durante a ditadura, de um lado ou de outro, as pessoas gostavam de atri- buir aos artistas intenções que nunca lhes passaram pela cabeça. Achavam que a maioria dos artistas só fazia música pensando em derrubar o governo. Depois da ditadura, falam que o artista só faz música para pegar mulher. Mas aí geralmente acontece o contrá- rio, o artista inventa uma mulher para pegar a música.

Em 1975, uma matéria sobre censura publicada no Jornal do Brasil revelou que Julinho da Adelaide e Chico Buarque eram a mesma pessoa. A partir de então a Polícia Federal passou a exigir cópias do RG e do CPF dos autores. O divertido compositor legou para a humanidade apenas mais uma canção: "Milagre brasileiro".


Já que era impossível compor, Chico dedicou boa parte de 1974 a escrever Fazenda modelo, uma novela em que, de maneira alegórica, critica as formas de dominação social, utilizando como cenário uma co- munidade bovina.

Ainda não era sua volta à literatura, mas um desabafo.


[Wagner Homem, Histórias de canções - Chico Buarque, Texto Editores Ltda (Leya), São Paulo, 2009]