A voz do morto

Estamos aqui no tablado
Feito de ouro e prata
E filó de nylon

Eles querem salvar as glórias nacionais
As glórias nacionais, coitados

Ninguém me salva
Ninguém me engana
Eu sou alegre
Eu sou contente
Eu sou cigana
Eu sou terrível
Eu sou o samba

A voz do morto
Os pés do torto
O cais do porto
A vez do louco
A paz do mundo
Na Glória!

Eu canto com o mundo que roda
Eu e o Paulinho da Viola
Viva o Paulinho da Viola!
Eu canto com o mundo que roda
Mesmo do lado de for a
Mesmo que eu não cante agora

Ninguém me atende
Ninguém me chama
Mas ninguém me prende
Ninguém me engana

Eu sou valente
Eu sou o samba
A voz do morto
Atrás do muro
A vez de tudo
A paz do mundo
Na Glória!



© Editora Arlequim

NOTE:
Assim como “Baby” me foi sugerida por Bethânia, “A voz do morto” me foi ditada pela Aracy de Almeida.
Ela estava em São Paulo para fazer a Bienal do Samba, que era um festival só de sambas, e estava muito irritada com a ideologia em torno daquilo.
Ela veio falar comigo: “Pô, me tratar como glória nacional pensando que vão me salvar? Puta que pariu, salvar o caralho! Estão pensando que vão salvar o samba na televisão? Salvar o caralho! Quero que você faça um samba,porque você é que é o verdadeiro Noel, porque você é violento, você é novo!”. Era assim que ela falava pra mim:
“Eu já estou por aqui, de saco cheio”— e ela pegava como se tivesse saco mesmo —; “Eu estou de saco cheio desse negócio de Noel Rosa, ter que arrastar esse morto pelo resto da vida. Quando eu canto é a voz desse morto!
E ninguém me engana com essa porrà não, de festival do samba. Faça uma música da pesada para eu gravar, esculhambando com essa porrà toda!”. Ela me ditou o samba! Fiz essa música, Ela adorou e gravou.
[Caetano Veloso, Sobre as letras, Editora Schwarcz, São Paulo, 2003]
Siamo qui sul palco
Fatto di oro e argento
E di tulle di nylon

Vogliono salvare le glorie nazionali
Le glorie nazionali, poveracci

Nessuno mi salva
Nessuno mi frega
Sono allegra
Sono contenta
Sono gitana
Sono tremenda
Io sono il samba

La voce del morto
I piedi dello storto
Il molo
Il turno del matto
La pace nel mondo
Nella gloria!

Canto con il mondo che gira
Io e Paulinho da Viola
Viva Paulinho da Viola!
Io canto con il mondo che gira
Anche se non ne faccio parte
Anche se  non canto ora

Nessuno mi aspetta
Nessuno mi chiama
Ma nessuno mi prende

Nessuno mi frega

Sono coraggiosa
Io sono il samba
La voce del morto
Dietro il muro
Il turno di tutto
La pace nel mondo
Nella gloria!