Refazenda

Paralamas do sucesso
  (voz, arranjo)

Demétrio Bezerra
  (trompete)

Monteiro Júnior
  (sax, flauta)

Abacateiro
Acataremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão
Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração

Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão

Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também

Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar

Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba



© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo)

Note:
   "Refazenda resultou de uma justaposição de nonsenses. Começou com um brainstorm com sons: fui aleatoriamente escolhendo palavras que rimassem e cheguei a um embrião interessante - um desses troncos de árvores tronchas sobre os quais o cinzel dos artistas populares vai trabalhar para fazer esculturas loucas, à la Antonio Conselheiro, do Mario Cravo, nascida de um tronco com dois galhos de braços abertos. O esboço era maior e muito mais absurdo: não tinha sentido nenhum! Aos poucos fui criando sentidos parciais a certas frases, até desejar um sentido geral para todas.
   "Os versos foram feitos antes da música, obedecendo a um ritmo que eu tinha na cabeça. Para o primeiro, escolhi o alexandrino, um dos preferenciais do cantador nordestino, pois queria a priori uma canção com esse direcionamento country."

   "Abacateiro, acataremos teu ato" - "Na época pensaram que eu me referia à ditadura militar (o verde da farda) e ao ato institucional, o que nem me passou pela cabeça. O que me veio mesmo foi a natureza em seu contexto doméstico, amansada, a serviço da fruição - daí a idéia de pomar e das estações. Refazenda é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e do aprendizado do seu ritmo."

   Linguagem transgressiva - "O período em que compus a canção é permeado pelo nonsense ou o que o tangenciasse; por um despudor audacioso de brincar com as palavras e as coisas; por um grau de permissibilidade, de descontração, de gosto pela transgressão do gosto. É uma fase muito ligada aos estados transformados de consciência, pelas drogas, e a consequente multiplicidade de sentidos e não-sentidos."

   Guariroba - "Nome de uma palmeira do Planalto Central, a palavra dava nome também a uma fazenda que um grupo de amigos (Roberto Pinho, Pontual e outros) tinha a uns cem quilômetros de Brasília. Chegou-se a pensar em criar lá uma comunidade alternativa, onde nos juntássemos todos com nossas famílias. Não deu certo, e a fazenda foi vendida."
[Gilberto Gil todas as letras, Companhia das Letras, São Paulo 2003, pp. 120-121]

   - Agora estou muito interessado no processo de criação de música espontânea e instantânea - dizia Gil em seus tempos de Londres. - Estou estudando muito. Violão, música. Estou ouvindo muitas coisas que eu não ouvia. Muito jazz, muita música pop. (...) Pesquisar dentro da sonoridade, tentar uma relação cada vez maior da música com a possibilidade destrutiva da realidade, em forma de som.
   Chegando ao Brasil, lançou, ao lado de gravações flagrantemente populares, um repertório mais ligado às experiências que viveu, e de caráter menos regional. Em Refazenda coexistem formas tradicionais e progressistas, numa demonstração de que é possível fazer música essencialmente brasileira com as mais variadas técnicas.
[Nova História da Música Popular Brasileira – Gilberto Gil , fascicolo + disco, Abril Cultural, seconda edizione, 1978]